Think Tanks vs. Tapa Tanks
O novo paradigma das
mandjuandades de cacre
“Para mim o fim das
eleições é um luto. Sinto-me só. Não me sentia tão abandonado desde a morte dos
meus pais. A camaradagem que ligava a nossa equipa de campanha, as festas, os comícios,
a esperança… [tudo acabou no dia em que] O meu candidato foi eleito. Ele já não
precisa de nós. Esqueceu-nos. Se quiseres conhecer a minha opinião, as eleições
são excitações colectivas para o prazer de um eleito frígido. O que é
importante para nós é a campanha eleitoral. É o momento em que ainda não há
eleitos. Quando só há candidatos ansiosos que precisam de nós. Percebes? “
Alala, in “Contos da Cor do Tempo”, 2004, KuSiMon Editora.
Eu não gosto do outono. Mas não gosto mesmo nada! Às vezes
digo a mim mesmo que devia era detestar o inverno, que é o pai do outono, mas
acho que não, é mesmo do outono que não gosto, que me chateia de verdade e me
entristece. Quando vejo uma árvore sem folhas, quando me deparo com crianças de
barriga pimpinhida, quando ouço cadastrados
a vangloriarem-se dos seus feitos eleitorais, quando o obscurantismo se alia à diskarna e despeja a esperança, é a
imagem do outono que me vem sempre à cabeça. E não é uma imagem qualquer, não.
E nem tão-pouco é recente essa imagem, ela vem de longe, de há muitos anos
atrás.
Ainda me interrogo como é que uma manhã que se anunciara cheia
de promessas, prenhe de novidades, veio a transformar-se em algo tão sem
encanto? Era para ser uma manhã fantástica aquela em que nasceu a minha imagem
do outono, com beleza e surpresa em tudo quanto era canto, mas não foi. Merda!
É uma imagem bastarda, produto do cruzamento de dois
momentos emocionalmente incompatíveis. E o pior é que, contrariando todos os
princípios da genética e demais leis da procriação, houve na génese desse
bastardo um elemento que se impôs, não como dominante, mas como único e exclusivo,
como se fecundação houvesse só com um cromossoma.
Foi o primeiro lance de uma longa e invulgar passada que só
vou contar a aqueles que ainda acreditam naquilo que prometeram nunca acreditar
depois de terem acreditado no que sabiam que não dava para acreditar. O que
importa, para começar, é que ainda me permanecem bem gravados na memória os
dois momentos: o de crença indubitável num desabrochar mil vezes desejado e o
insólito murchar mil vezes amaldiçoado. E o que separou os dois momentos? Nada!
Sim, isso mesmo, nada. Ou quase nada. Foi literalmente um fechar e abrir de
olhos…
Foi o abrir dos olhos e o esbarrar com aquele panorama
inusitado, insólito, macabro. Primeiro, foram os passarinhos, mudos, tristes,
solitários; depois foram as árvores, muitas árvores, desamparadas, todas elas
nuas, sem uma única folha nos ramos. Tudo estava incompreensivelmente calmo e
silencioso, em completa e absoluta dessintonia com o meu estado de espírito e
com o que imaginara na véspera ser aquele memorável dia. Doeu-me. Mas a sério…
Esse foi o segundo acto. Depois seguiu-se um outro, que para
além da dor trouxe uma outra sensação, essa mais difícil de catalogar. Mas
afinal o pior ainda estava para chegar. E veio do alto, do céu. Todo radiante e
exuberante, exibia-se o sol. Anunciava-se luz, vida, calor... Era tudo o que
precisava naquele momento para exorcizar a amálgama de desagradáveis sensações
que ameaçavam destruir todo um edifício, concebido com muita fé e paciência.
Mas quando a esse abençoado sol me tentei abraçar, senti-me apunhalado nas
costas. Afinal, aquele sol, aparentemente o mesmo sol que, na minha Pátria Amada, do céu mandava o calor que
aquecia tudo e todos, ali não acalorava coisa nenhuma!
Que desilusão!
Foi em Leipzig, numa manhã de Setembro de 1979. Disseram-me
que aquilo é que era o outono.
Na Pátria Amada as
árvores são todas portentosas e estão sempre, mas sempre, nfadjadas. Dia e noite. E os pássaros são alegres, coloridos,
livres... Voam e cantam todo o tempo, em qualquer altura do ano! E o sol quando aparece, em
qualquer altura do ano, traz sempre o calor e afugenta o medo, alimenta a sabedoria
e expulsa o obscurantismo, franqueia a verdade e impõe a harmonia. Tudo o que
contraria isso é uma farsa. Então o outono é uma farsa! Agora já devem calcular
porque detesto tanto o outono.
Quando, depois de seis outonos seguidos, voltei à Pátria Amada, não precisei nem de seis meses para descobrir que, afinal, outono não era uma estação do ano. Era uma estação da vida! Era como uma paragem obrigatória nesta eterna viagem em busca da utopia. E essa descoberta deveu-se, acima de tudo, a uma pessoa. Uma pessoa singular.
Alinli era o nome dele. Não o nome oficial, longo de nomes e sub-nomes, de que tanto se orgulhava,
antes o que ganhara de gente que ele considerava miserável e invejosa, e já se
vai saber porquê. Conhecemo-nos desde o tempo
dos tugas. Interessante como nunca tivemos atritos, eu e ele, o que era
pouco comum naquela idade em que roncar matchundadi
era a palavra de ordem... Lembro-me que no CIPES traficamos algumas influências e favores, nos intervalos de mata-bicho e
em partidas de futebol, e prestamo-nos mutuamente assistência em alguns exames:
ele era muito bom a Moral e Religião, eu adorava Matemática. Nos anos oitenta,
quando se tornou Alto Dignitário da
Nação e se deu início à ainda persistente epidemia de doutorice, eu
deixei-me contagiar. Confesso que me dava gozo chamá-lo de doutor, justamente a
ele que nem o Liceu tinha concluído. E o mais engraçado é que ele revelara-se cada
vez mais generoso por causa disso: uma vez, num dia de muita chuva, deu-me boleia no
seu Volvo e levou-me até a minha casa, que ficava numa rua não alcatroada e
pouco recomendada a esse tipo de carro; outra vez, durante aquelas cíclicas crises
de arroz características da época, facilitou-me a compra de um saco inteiro nos
Armazéns do Povo; outra vez ainda, que não posso esquecer, desenrascou-me
alguns medicamentos na FARMEDI, de que um familiar meu internado no hospital muito
necessitava e não conseguíamos encontrar em lado nenhum.
Depois de mais de duas décadas e após uma longa travessia do
deserto a que foi submetido, os caminhos de
Alinli voltaram a cruzar-se com os meus. Não poupou elogios às virtudes da democracia multipartidária e do estado de direito democrático, ao mesmo tempo que amaldiçoava o sistema de democracia revolucionária e o centralismo democrático. Um pequeno parêntesis: nunca imaginara possível fazer uma salada tão rica só com o condimento 'democracia'!
Quem não o conhecesse daqueles tempos, jamais iria imaginar que ele fora um dos mais exímios defensores e beneficiários daquilo que agora tão desdenhosamente chamava de ditadura... Senti-me tentado a colocar-lhe a questão, mas ele antecipou-se-me e sentenciou: o povo desta terra tem memória curta. E era por isso que ele preferia sempre olhar em frente... Falou-me da sua mais que promissora carreira política, do couro que ia ter depois do seu partido ganhar as eleições que estavam à porta. Pintou um quadro fascinante sobre o futuro de país, enfatizou o patriotismo e o pragmatismo, pilares da sua estratégia governativa, e apontou a via a seguir, a única que levaria ao progresso e bem-estar da nação: acabar com as mandjuandades de cacre. Tratava-se de um exercício em dois tempos: desembaraçar-se dos tapa tankis e criar think tanks, o que era sinónimo de despartidarizar o aparelho do Estado e promover a competência. Tão simples como isso! E com uma eloquência que não lhe reconhecia, fez ainda questão de me explicar como seria a renaissance uma vez instalado o novo poder.
Quem não o conhecesse daqueles tempos, jamais iria imaginar que ele fora um dos mais exímios defensores e beneficiários daquilo que agora tão desdenhosamente chamava de ditadura... Senti-me tentado a colocar-lhe a questão, mas ele antecipou-se-me e sentenciou: o povo desta terra tem memória curta. E era por isso que ele preferia sempre olhar em frente... Falou-me da sua mais que promissora carreira política, do couro que ia ter depois do seu partido ganhar as eleições que estavam à porta. Pintou um quadro fascinante sobre o futuro de país, enfatizou o patriotismo e o pragmatismo, pilares da sua estratégia governativa, e apontou a via a seguir, a única que levaria ao progresso e bem-estar da nação: acabar com as mandjuandades de cacre. Tratava-se de um exercício em dois tempos: desembaraçar-se dos tapa tankis e criar think tanks, o que era sinónimo de despartidarizar o aparelho do Estado e promover a competência. Tão simples como isso! E com uma eloquência que não lhe reconhecia, fez ainda questão de me explicar como seria a renaissance uma vez instalado o novo poder.
Surpreendeu-me a quantidade de termos e expressões em inglês
que usava: era ‘good governance’ aqui, ‘think tank’ ali, ‘accoutability’ e ‘brain storming’ acolá.
Fiquei deveras impressionado. O fulano deve ter gasto um bom tempo a nkornar relatórios do Banco Mundial,
PNUD, FMI, UNOGBIS e outros de matriz comum. Tudo tão ilusório, tão linear, tão
patético… Mas Alinli estava fascinado mesmo. No fim, como se todo aquele fantasmagórico
discurso não bastasse, pegou no seu computador portátil e exibiu números, gráficos
e imagens. Todos convergiam num ponto: vamos ter paraíso na nossa Pátria Amada!
No céu as nuvens, densas e escuras nuvens, movimentavam-se
escandalosamente, num anda-não-anda jamais visto. Pareciam estar num infindável
jogo de tadja-panha com o sol,
fazendo com que a estrada se assemelhasse a uma zebra, com faixas bem
delimitadas de sol e sombra, de fulgor e obscuridade, de subida e queda...
Visto de longe, o movimento era inquestionável: o sol estava
a arder, como era suposto acontecer, e as nuvens perpetuavam-se num vaivém cuja
dinâmica parecia todavia determinada pelo único propósito de manter o statu quo. Para quem estava perto ficava
uma inexplicável e deplorável certeza: aquela estrada cor de zebra não conduzia
a lado nenhum.
O djambakus-mor do Chão dos Nalus sentenciou com toda a
autoridade: zebra naquela altura do ano não se revela. E se o fizesse, qualquer
que fosse a forma, num sonho, ao vivo ou pintada numa estrada, era o presságio
de uma tragédia: florestas sagradas iam desaparecer, rios inteiros ficariam
secos de um dia para outro, árvores ficariam sem folhas, passarinhos perderiam
a voz e o colorido das penas… e os cacres iam reorganizar-se em novas e
poderosas mandjuandades e comer todo o arroz nas bolanhas.
Quando vejo bolanhas sem arroz, quando me cruzo com tronkerus armados de pau sangue, quando sinto a falência da decência nos actos e na palavra dos que pretendem falar em meu nome, é a imagem do outono que me vem de novo à cabeça.
E não é uma imagem qualquer, não. Ela vem de uma viagem
recente. Uma viagem a Catió, numa manhã de Novembro de 2014, sem aquele sol
redentor, o tal que traz o calor que derrete a frustração e ressuscita
o fervor da campanha eleitoral, capaz de reciclar a camaradagem e de nos devolver
imaculado o nosso candidato e a promessa de paradigmas outros que os adoptados
na(s) mandjuandade(s) de cacre. Percebes?
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