Apologia da Barbaridade

(Primeira Parte)

 (NB: este é um extracto de um artigo publicado em 2004 no semanário Kansaré)

 Os outros cães ainda ficaram um bocado a ladrar
 para o portão da escola, todos zangados,
 mas voltaram para o capim do outro lado da estrada
 para continuar a correr, a rebolar, a fingir que se mordiam
 uns aos outros, a correr, a correr e a cheirar
 debaixo do rabo uns dos outros.”
Luís Bernardo Honuwana
In “Nós matamos o cão tinhoso


Há dias em que a melhor coisa que se deve fazer é não fazer nada, mas nada mesmo. Absoluta­mente nada!

Mas, não fazer nada significa fazer o que? Dormir? Passear? Fechar-se em casa? “Kuar nobas” com amigos? Fazer política? Alguém tem uma ideia?

Não entendo. Será assim tão difícil não fazer nada? Pois é... Muitas vezes a gente quer fazer alguma coisa, desenrascar algum dos vários problemas que a vida não pára de nos criar, e não consegue. Faz-se muito esforço, gasta-se muita energia, consome-se muito tempo e paciência e não se faz nada. Agora, pretende-se não fazer nada, absoluta­mente nada, e não se consegue nada.

Até parece ser uma grande ambição, essa de pretender não fazer nada. Mas se for assim, quanto custará querer fazer algo? Digamos algo de natural, comum e espontâneo,  como o são capazes, por exemplo, os cães: correr, rebolar,  fingir que se mordem uns aos outros, correr, correr e  cheirar debaixo do rabo uns dos outros.

 Das utopias e fantasmas do passado

 Quando, na vã tentativa de não fazer nada, comecei a ler o livro “Nós matamos o cão tinhoso”, saltaram à minha frente recordações da infância. Eram imagens remotas de Catió de ontem, das partidas de futebol jogadas com pés descalços e bolas de trapos; das correrias pelas tabancas e banhos em grupo e ao ar livre  no tempo das chuvas; das operações nocturnas de roubo de jacas no quintal do velho Sadjo Karankeo; dos ajustes de contas durante as sessões de natação na lagoa de “Reia Branku”; da pesca de bentanas e eskilons no rio de Gam-Djola...

Tal como tem acontecido com certa regularidade nos últimos tempos, surgiu-me à frente a “Escola Missionária”. Engraçado como ainda me estão frescas na memória as sessões de catequese, as eternas peripécias para me desembaraçar do Padre italiano que não me queria ver a escrever com a mão esquerda, as danças de roda das raparigas durante o intervalo, danças que nos permitiam apreciar peças do vestuário e partes do corpo que noutras situações eram mantidas bem escondidas dos nossos sempre curiosos e atentos olhares.

Apesar dos bombardeamentos frequentes, da morte que espreitava em cada dia de “operação”,  Catió daqueles tempos era um mundo onde cabia toda a nossa fantasia.

Um dos epicentros das nossas façanhas era justamente a nossa escola, a “Escola Missionária”. O edifício da escola, que dantes era grande mas agora se tornou tão pequeno aos meus olhos; o campo de futebol, contíguo à varanda da escola e que nos servia não só para jogar à bola mas também para outras acções de demonstração e afirmação de matchundadi; e, finalmente, os professores, constituíam um conjunto à parte. Eram como peças de um pequeno “puzzle” que, quando encaixavam nas outras peças de um “puzzle” maior, nos proporcionavam experiências tão peculiares quanto antagónicas.

O prazer de jogar à bola contrastava com o flagelo das palmatórias. Os bombardea­­mentos frequentes e as mortes que a eles estavam associadas eram compensados com o sonho de ter uma Pátria (a tal Pátria Amada), livre e independente; sonho de ser cidadão obreiro da sua própria Nação.

Armados da inocência da idade, imaginávamos um mundo maravilhoso à nossa frente, onde iria reinar paz, justiça e solidariedade. Munidos do vigor e entusiasmo próprios da juventude, desenhávamos o nosso futuro cheio de cores, de epopeias repleto. Imbuídos do “espírito da luta”, não imaginávamos outro desfecho para o sacrifício colectivo que não a harmonia, a fraternidade, a liberdade e o progresso de todos e cada um dos membros obreiros da nossa jovem “Nação Africana forjada na luta”. 

Uma nação próspera, exemplar em todos os sentidos, onde até os cães iriam ter uma ocupação mais patriótica que não seja correr, rebolar,  fingir que se mordem uns aos outros, correr, correr e  cheirar debaixo do rabo uns dos outros.”...

“Pé na tchon, kobra na tchon”?

 Em Bissalanca existe um local deveras interessante, povoado de gente muito simpática e afável. A julgar pelo aspecto, ninguém seria capaz de imaginar a ocupação, menos ainda a profissão dos jovens e não jovens que passam uma boa parte do seu tempo com os olhos e as atenções voltadas para a estrada que passa pertinho, onde os toka-tokas disputam o dia inteiro passageiros, carga e animais.

O local faz fronteira com o aeroporto e há gente que o chama “Base Aérea”. Se é ou foi, pouco interessa. O que importa é que o pessoal que lhe controla o acesso é gentil, virtude em vias de extinção neste país.

No interior desse local existem umas instalações velhas, vários pavilhões de manutenção deficiente, a que se chama de hospital. Num desses pavilhões encontra-se internado há vários meses um homem abandonado à sua sorte, à espera da morte. Uma morte que se anuncia lenta, sorrateira, como que a contrariar o que foi (?) a sua vida. Diga-se desde já uma vida vivida em toda a sua plenitude.

Chama-se Ramalho Ncanha. Foi meu professor em Catió, na nossa famosa e inesquecível “Escola Missionária”. Foi uma das minhas referências positivas da infância.

Ainda me lembro do dia em que o nosso professor nos abandonou para se juntar aos combatentes que nas matas se batiam por aquilo a que orgulhosamente se designava independência. De um dia para outro, todos os professores da “Escola Missionária” e mais alguns jovens de Catió tinham desaparecido sem deixar rasto. Dizia-se que tinham sido mobilizados pelo conterrâneo Queba Sambu. Se verdade ou não, nunca soubemos. O que encontramos depois da partida, foi uma foto do próprio Queba na gaveta da secretária do nosso professor, abraçado a duas raparigas bonitas, sorridentes e loiras, supostamente russas, tendo como fundo o Kremlin.

Lembro-me da mensagem de despedida que o nosso professor tinha deixado na gaveta da sua secretária; lembro-me do truque que usou para se desembaraçar de mim no momento de despedida e, muito particularmente, do facto de ter oferecido a todos e a cada um dos seus alunos uma moeda de vinte e cinco tostões, menos a mim; lembro-me da “ginástica” que o Padre Salvador fez para tentar convencer as autoridades coloniais, em especial a PIDE, de que não sabia de nada...

Lembro-me de nosso reencontro em 1974, depois do fim da guerra, novamente em Catió, ele comandante vitorioso, eu finalmente cidadão de um país livre e independente; lembro-me dele, o professor de que fiz a principal personagem em “A última tragédia”, e de tudo quanto a sua postura representava para mim e para todos os meus colegas.

Lembro-me de tudo isso e muito mais.

Só não quero lembrar-me da revolta que senti nascer dentro de mim na última semana que o visitei; revolta que surgira da maneira como ele estava a comer as bolachas que lhe tinha levado. Comeu-as com faimadesa, parecia uma criança que acabara de ganhar um gelado. Seria mero prazer de saborear algo que não tivera em mãos há muito tempo ou seria algo mais sério? Não podia admitir a hipótese que era a mais evidente. Custava-me aceitar que um homem que dera sempre o melhor de si em prol da bendita “Pátria Amada”; que, para manter a honra e a dignidade, não hesitara em submeter-se a todo o tipo de tortura física e psicológica quando, em 1985, fora injustamente acusado de cúmplice do Paulo Correia na inventona que veio a ficar na historia como “Caso 17 de Outubro”; que encarnara com toda a convicção o “espírito da luta” estivesse agora com... tanta fome!

Não, não podia aceitar essa hipótese. Nunca!

Se ele é um dos mais conceituados comandantes do exército, então devia ter um salário ou no mínimo uma pensão. Se os militares recebem os ordenados de que tanto se fala ultimamente, então ele devia ter o suficiente para garantir pelo menos a sua alimentação. Se ele foi sempre honesto e fiel aos camaradas, então esses não deviam agora fingir ignorar o seu estado. Se ele não cometeu nenhum crime nem se apoderou do que não lhe pertencia, então não merecia aquele castigo. Se foi um dos melhores obreiros da nossa “Pátria Amada” e do Estado, então nem uma nem outro devia recusar estender-lhe agora a mão. Se desde que deixou a nossa escola em Catió, a nossa célebre “Escola Missionária”, foi sempre militar, então os militares seus camaradas não deviam desprezá-lo. Se os governos têm tanto dinheiro que se permitem que alguns concidadãos se apropriem dele da maneira como tem vindo a ser noticiado nos últimos tempos, então nenhum desses governos devia aceitar que o Comandante Ramalho Ncanha chegasse ao estado em que se encontra: doente, abandonado, sozinho num quarto escuro e húmido de uma caserna a cair aos bocados, à espera de algum milagre ou da morte. E enquanto nem um nem outro chegavam, entregue a si mesmo e tendo como assíduos companheiros as baratas e os mosquitos, vivia o desespero de ver passar os dias sentado numa cama isolada, sem nada poder fazer, sem poder voltar `a nossa “Escola Missionária” e fazer o que provavelmente mais gostou e soube fazer na sua vida: ensinar.

Quis perguntar-lhe a ele, que foi meu professor e sempre soube esclarecer as minhas dúvidas, o que tínhamos feito de errado para herdarmos o país que se dizia ser hoje o nosso. Tal como alguém fizera em “Mistida”, queria que o meu estimado e respeitado professor me esclarecesse onde estava o país pelo qual ele se tinha batido e com o qual tantas vezes nos tinha feito sonhar. Ele devia explicar-me, mas com todos os pormenores, onde é que se encontrava agora refugiado o “espírito da luta” .  E o tal “Homem Novo” de que tanto se falara onde é que se encontra? Estaria ainda em incubação em Candjafra ou algures em Bissau empenhado  no imundo processo de “desvio de procedimentos”?

Afinal, quem pode/deve rir-se de quem hoje na Guiné-Bissau?

Como se quisesse pôr fim à confusão que reinava dentro de mim, levantou a única mão que ainda podia movimentar e deixou-a cair em cima do meu braço. Vi que exibia no rosto uma expressão intrigante. Era um sorriso que noutras circunstâncias se chamaria de alegre, que contrastava com o que eu supunha ser o seu estado de espírito. Reparei nele mas não conseguia retribuir aquela repentina manifestação de alegria. Fiquei pávido a observar.

Definitiva­mente, ele ria-se de alguém ou de alguma coisa e eu não conseguia enten­der. Teria alguma razão para isso? Qual era o pretexto? Ele doente, abandonado, ria-se de alguém, mas quem? De alguém que estivesse pior que ele, era difícil de imaginar. E se fosse dos que o colocaram naquele estado? Mas será que isso faz algum sentido? Sim, até podia ser, pois o sentido de humor foi sempre uma das suas caracterís­ticas. Afinal, no meio de toda a corrupção e crueldade que destruíram até os ideias supremos de uma “Pátria Amada”, quem deve rir-se hoje de quem? Os que sequestrando a esperança encheram os bolsos dos que estão cada dia mais entalados? Os será os que mantêm intactos os seus ideais é que devem rir-se dos que, traindo a confiança e a expectativa de todo um povo, hoje (sobre)vivem sem honra nem glória?

Eram questões a que ele se mostrava todavia completamente alheio. Levantou o braço e apontou insistentemente para a janela.

Quando me aproximei da janela, ele ainda continuava com o dedo apontado na mesma direcção. Com muito esforço, próprio de quem não consegue emitir um som inteligível há vários meses, ele murmurou: “Ala elis!”.

E sem me dar tempo de perguntar o que quer que fosse, insistiu com o dedo para algo que se passava para além da janela, lá ao longe, bem longe daquele hospital.

E lá estavam de facto todos eles. Todos felizes, gordos e felizes, a correr, a rebolar, a fingir que se mordiam uns aos outros, a correr, a correr e a cheirar debaixo do rabo uns dos outros.
 
O último sorriso do professor Ncanha


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