O meu 25 de Abril



Uma tragicomédia plena de emoções e lições


"Infeliz o país que tem necessidade de heróis."
B. Brecht, in Galileu Galilei


O 25-de-Abril é (digo propositadamente é e não foi) uma espécie de tragicomédia: uma longa, irónica e perturbadora peça em três actos, que insiste em não ter um final feliz. 

A primeira notícia sobre o acontecimento foi encarada como mais um boato, produto da invejável capacidade de imaginação de gente que, numa manifestação ostensiva de desafio à eficácia da omnipresente rede de informadores da PIDE, andava na altura a inundar o meio estudantil com as mais descabidas e inverosímeis notícias sobre o iminente descalabro do regime colonial. Mas quando a novidade começou a ganhar credibilidade, transformou-se numa agitação que pariu muitas surpresas, gerando emoções e lições.

Disse-se que a guerra ia acabar, que a PIDE ia acabar, que a independência ia começar. Tudo isso ao mesmo tempo. Para mim, que vivia na altura em Bissau e tinha acabado de completar 16 anos de idade, o fim da guerra era uma sensação indescritível. O recensea­mento militar era um trauma latente, que ganhava maior consistência à medida que se aproximava a fatídica idade de 18 anos. Prestava cada vez maior atenção às conversas sobre o que significava ir à tropa, os estratagemas e truques para se livrar do recrutamento militar, as possibilidades e os canais de fuga para as Zonas Libertadas, etc. Do que significava a guerra ninguém precisava de me contar, ou não fosse eu de Catió, a terra onde todos os dias se ouvia ou vivia algum tipo de bombardeamento, aéreo ou terrestre. 

Dizer-se assim de repente, de um dia para outro, que a guerra, essa guerra cruel que tanto sofrimento me causara a mim e à minha família, ia acabar para sempre, era simplesmente tão bom quanto difícil de acreditar à primeira. Era o final feliz de um pesadelo que durava há tempo demais… 

A PIDE, e tudo o que ela representava, era um outro trauma. Mas mais do que os sequestros, os espancamentos e as deportações que lhe eram atribuídos, apoquentava sobremaneira a tortura psicológica, esse sufoco permanente de não se poder falar sobre os temas que mais interessavam e ter que medir cada palavra que se tirava da boca, essa terrível sensação de se sentir vigiado todo o tempo e em todo o lado. 

O 25-de-Abril, ouviu-se dizer logo cedo e ficou claro ao longo do dia, significava o fim de todos os nossos traumas. E com ele vinha associado um termo mágico, que em si continha o fascínio da liberdade de expressão, o alívio do pesadelo da guerra e, acima de tudo, uma dose extraordinária de orgulho pessoal e de realização colectiva: independência! 

Lembro-me das duas únicas aulas tidas nesse dia, ambas de professoras cujos maridos eram oficiais do exército colonial português. Enquanto uma dessas professoras, a mais nova, nos confirmou o fim do fascismo (e consequentemente da PIDE), a outra tentou abafar os ânimos – que se iam exaltando à medida que as informações circulavam – alertando-nos para o facto de ainda não estar nada claro na Metrópole. Ela insistiu várias vezes na necessidade de controlarmos as nossas emoções… Recordo-me de termos abandonado a aula antes da hora, justamente quando nos demos conta de que havia gente no pátio que parecia ter as emoções ao rubro, no primeiro comício espontâneo que teve lugar no Liceu. 

Foi ao assistir a esse comício que me dei conta de que de facto algo de extraordinário estava a acontecer. Os alunos foram saindo de diferentes salas de aula, juntando-se no pátio para ouvir pessoas que não conhecíamos, jovens como nós mas que não eram alunos do Liceu, e que falavam de coisas simplesmente fantásticas. A minha primeira conclusão foi que a PIDE tinha acabado. Se não, como era possível falar publicamente do PAIGC, louvar os que até aí eram chamados de terroristas e gritar tantos abaixos ao regime colonial-fascista português sem um mínimo sinal de receio? E se esse 25-de-Abril tinha acabado com a PIDE então ia também pôr fim à guerra… E se tudo isso estava a acontecer, então o vaticínio daquela memorável manhã estava confirmado: a independência ia começar!

No dia seguinte assistiu-se a um idêntico cenário: aulas a que quase ninguém assistia depois da chegada daqueles que só se tratavam por camaradas e usavam, todos eles, sumbias na cabeça, e a professora que insistia na necessidade de sermos cautelosos e ponderados, pois independência não era a mesma coisa que o que se andava a dizer por aí a torto e a direito… 

Foi muito emocionante constatar ter-se assumido como dado adquirido, logo no segundo dia, não só o fim da PIDE, mas também o fim da guerra. Era o anúncio da conclusão do segundo acto, também esse com um final que se antecipava feliz… Mas as verdadeiras emoções ocorreram na tarde desse dia, no comício que teve lugar nas imediações da sede da PIDE, a seguir à libertação dos prisioneiros.

As poucas reuniões públicas a que assistira até aquela altura tinham sido quase todas monótonas, muito ordeiras e, acima de tudo, obrigatórias. Eram organizadas pelo poder colonial ou por ele estritamente controladas. Pela primeira vez tinha ido voluntariamente a um comício. Com alguma desordem e muita emoção, falou-se da independência, do sacrifício que custara e dos benefícios que trazia; do desenvolvimento económico, social e cultural que nos tinha sido negado durante séculos pelos colonialistas e que a partir daquele momento ia ser realidade na nossa Pátria Amada; da batalha de criação do Homem Novo, ciente dos seus deveres, sujeito activo da sua História, cidadão profundamente comprometido com as legítimas e inalienáveis aspirações do seu valente povo e obreiro incansável da paz e do progresso da sua Pátria Amada. Com muito orgulho e elevado sentido de patriotismo, disseram, íamos construir a nossa Nação Africana forjada na luta onde iria reinar a liberdade, a solidariedade e a dignidade… Era o início do derradeiro acto que, mais do que os dois precedentes, tinha assegurado, à partida, um desfecho feliz.

Mais do que a magia das palavras e o espectáculo dos gestos que as acompanhavam, que criavam um ambiente deveras estonteante, impressionava-me a emoção que os oradores transmitiam, a imagem de seriedade e de determinação que todos eles deixavam transparecer. Algumas dessas pessoas eram-me conhecidas, as outras vim a conhecer pouco depois. Naquelas circunstâncias, a única impressão que se podia ter delas era a de gente comprometida com a liberdade, a justiça social, o bem-estar comum, o desenvolvimento da nossa Pátria Amada.  

E foi justamente esse comício, pelo patriotismo dos discursos e comportamento posterior antipatriótico de alguns dos seus autores, que fez com que o 25-de-Abril se transformasse de uma onda de emoções inesquecíveis numa fonte inesgotável de lições para mim. São lições que determinaram algumas das opções que fiz desde então e, sobretudo, influenciaram de uma forma decisiva o meu posicionamento em diferentes momentos críticos da nossa História recente. 
Ao longo destes quarenta anos vivenciei muitas situações idênticas às dos primeiros dias do 25-de-Abril. Cenas do mesmo acto, sucederam-se o 7-de-Junho, o 17-de-Outubro, o 14-de-Novembro e o 32-de-Onzembro, dando continuidade ao tal terceiro e último acto da tragicomédia cujo desfecho não era, por definição, suposto ser trágico. 

Analisando o actual contexto guineense, na véspera de mais uma entrada em cena do mesmo elenco – embora alguns actores tenham entretanto trocado de papel e outros retocado a indumentária – hipocritamente repetindo quase as mesmíssimas promessas velhas de 40 anos, fazendo recurso à  invejável eloquência de burlão, exigindo a habitual generosidade dos espectadores, apraz-me citar a Professora Irene Peppenberg, passagem retirada de um depoimento datado do início deste século, altura em que a actual crise financeira das potências mundiais, embora bem disfarçada, já se anunciava:
“Não estou particularmente optimista neste momento. A civilização humana, no entanto, parece proceder em ciclos e eu acredito num novo ciclo positivo. Toda a idade de ouro foi seguida de uma decadência. Estou optimista sobre a possibilidade de começarmos uma nova renascença, um novo iluminismo, uma profunda mudança global que nos leve a um mundo melhor”.

Neste momento em que os espectadores deste grande e exuberante palco que é a Guiné-Bissau se preparam para assistir a mais uma cena desta tragicomédia magicamente suspensa no tempo, agrada-me partilhar este optimismo porque acredito que depois de tudo o que aturamos nas últimas décadas, somos capazes de, ‘usando as nossas cabeças e movidos pelo profundo amor à pátria’, conceber um outro espectáculo, se calhar uma nova peça de teatro do tipo brechtiano, “que atinja o povo e contribua para que ele saiba que há, sim, cura para aquilo que se pensava ser um mal social sem remédio” (*). 

Afinal, como presumíveis ‘co-autores morais’ do 25-de-Abril temos a obrigação, também moral, de tirar as devidas lições do acontecimento e assumir que, lá como cá, o povo é quem mais ordena.

Bissau, Março de 2014

(*) Laura C. Padilha, in "Dois Tiros e Uma Gargalhada" (Posfácio), KuSiMon Editora, 2013



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