Dos Dois Lados
Prefácio ao livro "Do Outro Lado" de César Fraga. Editora Olhares, S.Paulo, 2014 |
Dos dois lados
“Cada membro da família em sua própria cela
de consciência, cada um fazendo a sua colcha de retalhos da realidade – colectando
fragmentos de experiência aqui, pedaços de informação ali. A partir das
minúsculas impressões que compilavam uns dos outros, criaram uma sensação de
fazer parte do lugar e tentaram se arranjar com o que viam um no outro”[i]
O que terão hoje em dia
em comum as haitianas empregadas numa propriedade agrícola do seu país vizinho
e as mulheres de Bulol, que “trabalham curvadas,
formando uma fileira em perfeita simetria”? A fisionomia? A cor da pele? A precariedade da vida que
levam? Certamente, mas há algo mais. Para além dos aspectos evidentes – físicos
ou materiais – há outros elementos comuns, menos perceptíveis mas nem por isso
menos relevantes. Trata-se de algo íntimo, espiritual, indescritível: a sua
percepção do mundo em que vivemos. Deste ou do outro lado do Atlântico, de uma
forma assumida ou ainda camuflada, todos os africanos (incluindo naturalmente os
da diáspora) partilham no seu âmago um sentimento comum: têm contas a acertar
com a História.
Trata-se de um exercício
colectivo, complexo, moroso, sinuoso, pleno de acidentes e incidentes, onde a
única certeza, mesmo que às vezes ténue como os raios de sol no tempo da chuva,
é que nada será esquecido. Talvez por isso, mas certamente porque profundamente
convictos da inevitabilidade e do desfecho da operação, os africanos deste e do
outro lado do Atlântico estejam abnegada e pacientemente “colectando fragmentos de experiência
aqui, pedaços de informação ali”.
Este belo livro de César
Fraga enquadra-se, em última análise, nesse esforço
colectivo de confeccionar a tal “colcha
de retalhos da realidade” para que os “lugares de memória” não se transformem
em obscenos “monumentos a um fracasso”. É que o
corpo pode ser feito prisioneiro, maltratado, escravizado até, mas o espírito,
esse sempre se manterá livre, imaculado, eternamente rejuvenescido, inventando
diariamente formas sublimes de se manifestar, seja através da literatura, da música, da dança
ou do canto, num perpétuo desafio às mais refinadas teorias do existencialismo.
César Fraga segue, com muita originalidade e excelência, as
pegadas de outros “membros da família”,
deste e do outro lado, como sejam Alex Haley, Marcus Garvey, Kwame Nkrumah,
Amílcar Cabral e tantos outros cuja identidade e contributo a História se
encarregará, mais cedo ou mais tarde, de resgatar do anonimato.
Mais do que as imagens e
descrições chocantes da barbárie perpetrada nos “lugares de memória” dispersos
ao longo da costa ocidental africana, da qual partiram sem direito a retorno
milhões e milhões de africanos, as imagens dos ambientes e momentos culturais
incluídas nesta obra de arte têm a magia de despertar a nossa consciência
identitária. Ao provocar o confronto cultural com o outro – justamente esse que,
depois de ver desarticuladas as infames teorias que fundamentaram a
escravatura, a colonização e o apartheid tenta agora impor a cartada de black tax – projecta-se a sensação de
nada “ter mudado com o tempo”.
É na ambiguidade dessa
sensação que podemos encontrar a explicação para o posicionamento do régulo de
Bulol sobre a imperiosidade de assegurar que vai haver sempre, mas sempre, uma
árvore em cujos galhos vão permanecer as correntes que há vários séculos atrás
foram usadas para escravizar os seus antepassados. Esse despudorado e secular
exercício – que também parece não ter mudado com o tempo – só pode ser
concebido como sendo tributário de valores transcendentais.
Assim, ao eternizar a
sensação de “fazer parte do lugar”, o
que verdadeiramente deve estar em causa não é reabilitação nem tão pouco
reafirmação ou redenção do africano. É muito mais que isso. É devolver os
momentos de História ao movimento da História feita de humanismo. É recriar a
Humanidade, tendo, de novo, África como seu berço.
Bissau, Junho de 2014
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