Entre a herança do futuro e a historicidade do presente
Prefácio ao livro "Recortes da História da Guiné-Bissau" de Catarina Lopes, FEC, 2009
Entre a
herança do futuro e a historicidade do presente
“…passando da história à natureza, o mito faz uma
economia: abole a complexidade dos atos humanos, dá-lhes a simplicidade das
essências, suprime toda e qualquer dialética, toda e qualquer discussão que vá
além do visível imediato, organiza um mundo sem contradição por não ter
profundidade, um mundo mostrado na sua evidência: o mito funda uma clareza
feliz: as coisas parecem significar elas mesmas.”[1]
Este livro, eloquentemente intitulado “Recortes da História da Guiné-Bissau”, tem uma história. Uma
história que ao mesmo tempo transcende e se coaduna com a História que nele se
pretende (re)cortar e costurar, num exercício narrativo capaz de causar inveja
aos mais célebres griots do império
de Wassulu.
Mas este livro tem ainda uma outra história, aparentemente menos
evidente, mas nem por isso
menos preponderante e que tem a ver com a sua génese. Esta obra é um
resultado audaz e oportuno (conforme se tentará demonstrar mais adiante) de um
grupo de jovens desta nova geração googleana,
desprovida dos complexos do passado e comprometida com os desafios de um futuro
globalizante. A intenção confessa dos que conceberam e realizaram este projecto
tem a ver com a superação de uma realidade duplamente negativa: a necessidade
de abafar a revolta e a decepção perante a escassez de material de referência
para o ensino de Historia no sistema educativo guineense e a chocante
ignorância da historicidade do presente.
Compenetrada na reconstrução daquilo que nunca se construiu - e em
contradição com uma das práticas culturalmente mais nobres e enraizadas -, os
sucessivos poderes relegaram para um plano inferior uma das tarefas mais
relevantes para a sua própria sobrevivência no tempo.
Com efeito, renegando a função social do ensino da Historia, o poder
dito moderno acaba inevitavelmente por fazer recurso a mecanismos semelhantes
aos privilegiados pelo poder tradicional para a sua reprodução e legitimação,
mecanismos esses em que o mito desempenha um papel fundamental.
Este livro tem vários méritos. Ao adoptar uma metodologia contrária
àquela privilegiada tanto pelos tradicionais cantadores da Historia como pelos
seus ‘homólogos’ modernos fazedores dessa mesma Historia, este livro
apresenta-nos uma versão isenta da simplicidade do mito, resgatando das trevas
e do obscurantismo os seus elementos desestruturantes, propondo e criando no
seu lugar as matrizes da afirmação de uma nova ‘consciência histórica’ no seio da sociedade guineense.
Contrariando o modelo a que nos habituaram os griots, cuja sapiência era avaliada em função da sua
capacidade de enaltecer o mito, os
autores desta obra propõem-se, de uma forma confessa ou não, descompor justamente
o mito, essa pedra angular sobre a qual se sustenta o complexo edifício representativo
do nosso imaginário comum.
Num país que há décadas se vê a braços com questões de preservação da
sua identidade e com desafios que até põem em causa os fundamentos da sua
afirmação como Estado/Nação, o recurso aos mitos para “apreender o inapreenssível, formular o informulável, e deixar falar o
que é de per si, indizível”[2] é ao mesmo uma opção bastante
apelativa (na perspectiva dos detentores do poder político) e um desafio à capacidade da
sociedade, como um todo, e muito
particularmente do cidadão, de assumir a sua responsabilidade como actor da
História.
Com efeito, quebrar o ciclo infernal de violência, frustração e
ausência de progresso social que têm caracterizado a história recente deste
país e do seu povo, requer, antes de tudo, uma nova atitude e uma nova postura
perante os inadiáveis e complexos desafios que se colocam à sociedade e ao
cidadão. E tal como os mitos, essa nova mentalidade (a que A. Cabral chamou de
‘Homem Novo’) não nasce do nada. Ela advém, sim, de uma acção propositada,
socialmente justificada e historicamente fundamentada, a nível da consciência
colectiva, para que, por um lado, a interpretação dos acontecimentos históricos
não se limite a engrossar o rol de mitos (nem a sua preponderância) e, por
outro, se dê um novo rumo à Historia de modo a que a sempre latente mas ainda
incipiente ‘consciência histórica’ do
cidadão comum guineense não se confunda com a ‘consciência politica’ da sua elite dominadora.
Urge pois que aos dogmas e ritos associados ao mito se contraponha o aperfeiçoamento
de um ‘senso histórico’, para se assumir
uma postura crítica em relação à historicidade do presente e o que ela
significa para o futuro.
E é justamente esse o segundo e provavelmente o maior mérito que se
pode atribuir a este livro. Com efeito, ao proporcionar um momento de reflexão
sobre o seu passado histórico de uma forma “que vá além do visível imediato”,
revelando subtilmente o paradoxo entre o discurso político e a prática corrente
durante determinados períodos da história recente do país, os autores desta
obra prestam um grande contributo para o desenvolvimento desse ‘senso histórico’, que alguns consideram
como uma etapa fundamental rumo ao aperfeiçoamento de uma ‘consciência histórica’, entendida como um estágio em que o cidadão (e
a comunidade em que está inserido), munido das referências próprias do seu
legado histórico, assume de uma forma responsável e criativa a construção de um
passado mais dignificante[3].
A importância desse esforço de criação da uma ‘identidade histórica’
colectiva torna-se mais evidente se se tiver em consideração não só o relativamente
extenso mosaico étnico (e suas características intrínsecas) de que se compõe a
actual nação guineense em formação, mas sobretudo os imperativos de edificação
e conservação de uma identidade cultural própria.
Não se podendo atribuir a génese dos conflitos e a ausência de
progresso económico e social exclusivamente à ausência dessa identidade, é
todavia senso comum entre os guineenses mais esclarecidos de que algo deve ser
feito de modo a que os bem patentes deficits de homogeneidade não conduzam – à
semelhança do que se verificou em outras partes de África e do mundo - a uma situação de decadência susceptível de
por em causa a existência do país enquanto tal.
Adoptando uma metodologia próxima da de uma abordagem jornalística
isenta, os factos constituintes da turbulenta história recente do país são
narrados com uma preocupação notória de deixar ao cidadão leitor a sublime
tarefa de descobrir a relevância e o sentido a atribuir aos mesmos. Agindo
desta forma, propositadamente ou não, o cidadão vê-se no direito e na obrigação
de questionar a sua própria atitude perante esses mesmos factos históricos de
que ele é, reconhecendo-o ou não, protagonista e, num segundo momento, de
avaliar a sua contribuição pessoal (ou falta dela) no dimensionamento das
relações de poder prevalecentes.
Ao (re)cortar a Historia dessa forma, o cidadão é interpelado e
intempestivamente submetido a um exercício inédito: costurar esses diversos
momentos de sua própria história – sem nódoas nem mágoas - de modo a deles
fazer um todo com que se identifique e em que se reconheça. Ao fazê-lo, o
cidadão terá que, necessariamente, proceder a um exame da sua própria
consciência e, por essa via, consolidar a sua “consciência histórica” ou então
assumir a sua “inconsciência histórica”.
Mas qualquer que seja a atitude da elite guineense que terá o
privilégio de poder ler esta obra, a verdade é que, em última instância, ele[4] “é deixado livre
para escolher entre duas posições:
1) opor-se à história que está sendo feita por uma pequena
minoria (e, neste caso, ele tem liberdade para escolher entre o suicídio e a
deportação);
2) buscar refúgio numa existência subumana ou na fuga”.
Dos leitores mais críticos surgirá natural e logicamente a questão
sobre a pertinência e/ou relevância deste facto narrado ou daquela
personalidade incluída na Lista Biográfica. Desta legítima interrogação nasce
um terceiro mérito deste trabalho: a incitação à reflexão, o estímulo à
elaboração de outros trabalhos do género, que não podem ser senão
complementares, na medida em que serão contributos necessários e indispensáveis
à elevação do debate que deve ser promovido com vista ao reforço da ainda débil
e, consequentemente, pouco interventiva ‘consciência
histórica’.
É minha convicção de que
só construindo um passado sem nódoas nem mágoas seremos capazes de encarar o
presente sem o pesado fardo do futuro e, sobretudo, sem os mitos e os fantasmas
a eles associados, cientes de que “a história não
marcha indelevelmente para o progresso, que a racionalidade e a ciência não dão
conta da evolução humana e de que o futuro é missão de cada um e de todos”
[5]
Bissau, Outubro de 2009
[1]
Roland Barthes, Mitologias, Edição
Bertrand, Rio de Janeiro, 1999
[2]
http://pt.shvoong.com/humanities
[3]
Trata-se efectivamente de
construir o passado como uma dádiva para as gerações vindouras
[4]
Mircea Eliade, “Mito do eterno retorno”, Editora Mercuryo,
S.Paulo, 1992
[5]
Luis Fernando Cerri , “Os
conceitos da consciencia historica e os desfios da didactica da historia”
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