Whites Only

WHITES ONLY
Ou a vã tentativa de transformar o extraordinário em rotina

Estive recentemente na África do Sul, mais especificamente na Cidade do Cabo. Foi uma missão preparada com vários meses de antecedência, sendo que uma das tarefas mais importantes que me atribuí não tinha nada a ver com o que, formalmente, justificava a minha viagem. Queria conhecer a sociedade sul-africana por dentro. Baseado em experiências anteriores, vividas noutras longitudes, noutros tempos e em diferentes momentos históricos, tinha uma ideia elaborada sobre como atingir esse objectivo. Estava muito confiante. Não esperava dificuldades, nem surpresas maiores. Mas, como que a querer confirmar que, definitivamente, "das Leben laeuft nicht geradelinig”, elas aconteceram…

Uma vez no terreno, assumi propositadamente a atitude de um adolescente que, com um sofisticado smart phone na mão, desses que abundam no mercado de Bandim importados não se sabe ao certo se da China ou do Dubai, se entretém a descobrir qualidades e performance, sem nunca questionar a sua originalidade nem autenticidade.

Visitei, naturalmente, o renomado “Cabo da Boa Esperança” e assisti a um pôr-do-sol memorável. Mas a minha verdadeira ‘boa esperança’ estava bem longe, algures nos ainda existentes e tão constrangedores ghettos, onde, com uma paciência fora do comum, muitos sul-africanos ainda aguardam pelo fim do apartheid económico.

Não visitei Robben Island, mas tive a oportunidade de estar em contacto com muitos vestígios do apartheid. O que mais me tocou estava justamente junto ao edifício do Supremo Tribunal, que descobri numa tarde de sol e sem chuva. Eram dois bancos, um de cada lado da entrada principal, e diziam isto: “Whites Only”, no lado esquerdo, e “Non-White Only” no lado direito. Os bancos eram relativamente novos, a madeira bem polida, os caracteres bem legíveis. Tudo ali bem cuidado, à vista de todos. Confesso que fiquei por alguns momentos chocado com essa despudorada ostentação.

Fiquei parado a olhar, com recordações da luta contra a discriminação racial a desfilarem na minha mente. Mas, surpreendentemente, constatei que nenhum dos transeuntes dava atenção ao facto. E eram muitos, 'whites' e 'non-white'. Quando pedi a um jovem que passava perto que me ajudasse a fixar aquela imagem através da minha máquina fotográfica, notei quão banal era aquilo tudo para ele. Tirou as fotos, devolveu-me a máquina, ofereceu-me um sorriso e foi-se embora sem olhar para trás. Era negro o jovem, e aqueles bancos e as mensagens neles gravadas, aparentemente, não lhe diziam nada… Seria isso um dos resultados do processo de reconciliação? Ou antes uma mera manifestação de quem se sentia na posição de ter acertado as contas com a História?

De regresso à minha “Pátria Amada”, deparei-me com discursos de amnistia em todo o lado, inclusive no parlamento. Aparentemente, pretende-se perdoar a quem nunca reconheceu ter cometido crime algum. Faz sentido? Tem cabimento? E se sim, que dizer dos outros crimes políticos, que abriram feridas que ainda continuam a sangrar no coração e na alma de tantos concidadãos? E dos crimes económicos, encomendados e executados sempre pelo mesmo bando de malfeitores, que mantém o país inteiro e o seu povo na miséria com tanta riqueza à volta? E dos outros crimes financeiros, cometidos pelos novos djintons de Bissau, que pretendem manter o futuro do país para sempre sequestrado?

O regime do apartheid cometeu crimes e causou males que os sul-africanos jamais esquecerão, mas vê-se claramente, mesmo nos actos mais banais do cidadão comum, sinais animadores da vontade de perdoar e de se reconciliar. Onde está o segredo? Os mais esclarecidos dirão que para se chegar a esse ponto, a sociedade sul-africana inteira, “whites” e “non-white”, fez um trabalho de fundo, sério, chamando as coisas pelo nome, e depois, só depois disso, falou-se em perdão e reconciliação.

E nós? Tudo a kotorbidoh! Mas, e se deixássemos esse patético exercício de transformar o extraordinário em rotina, se promovêssemos um genuíno processo de “Verdade e Reconciliação”, com honestidade, sem tanto tafal-tafal?

Perdoar deve ser uma atitude consciente e voluntariamente assumida, não uma imposição.
Fazer do perdão e da reconciliação um assunto de moda é perigoso e contraproducente. A moda é efémera, os sentimentos que sustentam o perdão e a reconciliação são profundos e eternos.

Bissau, Setembro de 2014.


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