Ensaio sobre a vassalagem

Numa demonstração inequívoca de ignorância relativamente aos factos históricos que caracterizaram a caminhada deste povo para a sua auto-afirmação, a actual crise que assola o país tem sido catalogada como sendo baseada numa suposta incompatibilidade de carácter entre dois dos mais Altos Dignitários da Nação. 
Nada mais falso!
Foto: Helena N. Abrahamson 


“…uma catástrofe só é travada se for narrada. A narração excede-a. A narração discute a ordem das coisas, o silêncio confirma-a. É por isso que quando narro forçosamente me interrogo onde está a ordem, a moral, a lei de tudo isto.” – C. Fuentes 
 Quando Xanana Gusmão, então Primeiro-ministro de Timor Leste, visitou a Guiné-Bissau em Outubro de 2013, proporcionou-nos um espectáculo digno de reverência: entrevistado após a visita a um quartel militar, por sinal bem guiada, pôs-se de repente a chorar perante os microfones e as câmaras! E pareciam reais e espontâneas aquelas lágrimas, não as causadas por algum gás lacrimogéneo ou aquele tipo de sukulbembe que abunda na nossa terra naquela altura do ano. Tão reais e surpreendentes como o sorriso matreiro estampado no rosto de alguns dos seus anfitriões, Altos Dignitários da Nação com altas patentes militares, que tinham montado a ‘emboscada’ com aparente sucesso. De facto, era no mínimo intrigante ver um homi-garandi daquela idade, que ainda por cima tinha sido guerrilheiro, a verter lágrimas daquela maneira. Intrigante e desolador também, diga-se de passagem. Que lhe terão feito ou dito os nossos ex-guerrilheiros? Porque foi escolhido justamente um quartel com aquelas casernas em ruínas em vez de um outro local menos putrificado, mais nobre, para um hóspede tão ilustre? Que lógica estará por detrás de tal decisão?

Quando a auto-estima leva à fedúcia
Numa demonstração inequívoca de ignorância relativamente aos factos históricos que caracterizaram a caminhada deste povo para a sua auto-afirmação, a actual crise que assola o país tem sido catalogada como sendo baseada numa suposta incompatibilidade de carácter entre dois dos mais Altos Dignitários da Nação. Nada mais falso!
Mas admitamos, quanto mais não seja por mero exercício teórico, que esse seja o verdadeiro motivo de tanto tchumul-tchamal, que para além do stress permanente e sentimento de frustração inexplicável a nível individual, tantos danos tem causado ao país em termos económicos, sociais e morais. Haverá assim tanto défice de patriotismo que justifique que nenhum dos “contendores” se sinta na obrigação, pelo menos moral, de pôr fim a esta mais que lastimável situação? Ou será que, pondo a mesma questão do ponto de vista dos politiqueiros, o povo estará a clamar por tanta matchundadi?
Conhecendo ambos os protagonistas – e de há longa data – e reconhecendo a ambos o estatuto de pessoas de bem, duvido que seja esse o motivo de tamanha desavença. Mas então qual é o verdadeiro problema que eles estão com ele?

Um legado de traição e vergonha
Antes de mais, é preciso reconhecer que, por mais surpreendente que possa parecer, não estamos perante uma situação inédita, nem tão pouco imprevisível. Aos observadores mais atentos não terá passado despercebido o facto de que o que temos vivido nesta última legislatura não é mais do que a ponta de um iceberg – magistralmente concebido pela elite guineense, a sua classe de politiqueiros em primeiro lugar – cuja base tem vindo a ganhar consistência ao longo dos anos. Existem factos e motivos históricos, evidentes e inquestionáveis, bem ancorados na vivência dos guineenses desde há várias décadas, e que configuram algo que tem um nome simples: política de vassalagem.
Trata-se de uma espécie de código de conduta de certa forma consistente, que tem sido implementado consoante as circunstâncias e momentos políticos específicos, com maior ou menor genica conforme os actores em cena. Mas ele é acima de tudo uma política que reflecte de forma indubitável os limites intelectuais e a lógica decadente que têm caracterizado os detentores do poder de decisão e a liderança política guineense das últimas décadas. E tanto assim é que basta lembrar que na gestão dos assuntos do Estado, dos mais simples aos mais complexos, quer se trate de intentonas ou inventonas, a prática tem sido sempre a mesma: perante os mesmos sintomas aplicam inexoravelmente as mesmas receitas.
Por isso não admira a frenética dança das cadeiras no governo, nem as frequentes razias que se verificam, contra toda a lógica racional e as mais elementares regras de boa gestão, nos demais postos directivos da administração pública. Existe, de facto, uma espécie de pacto social secreto, do qual resulta a similaridade de argumentos para explicar tanto a ascensão quanto a queda da quase globalidade dos Altos Dignitários da Nação, incluindo quando essa ascensão e queda se processam através de golpes de Estado. 

Por quem os sinos dobram 
Fazendo jus à afirmação do conceituado escritor angolano Luandino Vieira, aplicada ao actual contexto político guineense, qualquer forma de envolvimento na política de vassalagem é uma revelação explícita de que “só um lado de nós cresceu[1]. Assim, mais do que arte ou manifestação de maquiavelismo, os adeptos da política de vassalagem fazem uma confissão, uma confissão a todos os títulos deplorável: a de não terem evoluído política e intelectualmente o suficiente, a de não estarem em consonância com os requisitos básicos da modernidade e, sobretudo, não estarem aptos para os desafios deste século: agir localmente, mas pensar globalmente, para além da ponta do próprio nariz.
Essa lógica de fenkotondadi subjacente ao reconhecimento implícito do atrofiamento político é que certamente faz com que, na sinistra luta pelo acesso aos e manutenção dos cargos públicos, a quase totalidade dos Altos Dignitários da Nação opte pelo recurso à tal estratégia de vassalagem, que vem da Idade Média europeia, e que obriga a que o vassalo, para ter o que comer e um lugar para viver, tenha que garantir fidelidade ao seu suserano.
E porque essa relação de suserano/vassalo é assumida na sua plenitude e sem complexos, actuando até ao nível do subconsciente dos seus adeptos, resulta que sempre que o assunto é a distribuição de ‘couros’, quer seja no aparelho do Estado, quer nas demais instituições e empresas dele dependentes, os detentores do poder de decisão privilegiem não a competência ou o mérito, mas simplesmente a fidelidade. Afinal o que se tem em vista, em última análise, não é a acção governativa stricto sensu, antes a reprodução da relação de vassalagem como garante da afirmação e consolidação de um poder personificado, que se pretende cada dia mais amplo, incontestado e omnipresente.
Assim, instaura-se um ambiente ideal para o avigoramento da mediocridade e da irresponsabilização, consubstanciado na rejeição de tudo e todos quantos de alguma forma possam representar algum tipo de pensamento crítico e independente.
É, pois, nessa lógica global de rejeição da competência em favor da vassalagem, de que a nossa história política recente é muito rica, diga-se de passagem, que se enquadram certas atitudes e decisões de fundo na configuração e gestão dos assuntos do Estado, incluindo os que vieram a desembocar no famigerado (des)acordo de Conacri. 

Roma não, mas Bissau paga a traidores 
A essa manifestação de pequeneza – política e intelectual – se convencionou ironicamente apelidar de confiança política. Paradoxalmente, essa forma de revelação de ‘não-crescimento’ é tão cara que se chega ao ponto extremo em que, quando o mais Alto Dignitário da Nação não reconhece indícios suficientes de vassalagem num outro Alto Dignitário da Nação, manda este passear. Não se se preocupa em invocar a Constituição, nem nada que se lhe pareça, bastando simplesmente alegar ausência da sacrossanta “confiança política”.
E o que diz no meio disso tudo a nossa intelligentsia?
Entre a prostituição política e a humilhante tarefa de ‘buska djanta ku sia', quais dedicados vassalos, a intelligentsia guineense tem primado, também ela e tristemente, pela sua inaptidão e pequenez perante os desafios que lhe são histórica e socialmente incumbidos. Contrariando o renomado espírito rebelde do guineense comum, e de certa forma ignorando a tradição de insubordinação que caracterizou o derradeiro período da luta de libertação nacional, a elite intelectual guineense apresenta-se amordaçada e aparentemente conformada com o desaire que a nação vive, sendo incapaz de promover o indispensável debate e confronto de ideias, nem tão-pouco constituir-se numa referência positiva, reveladora de alguma luz num túnel tão obscuro. 
Assim, em vez de se opor – ou ao menos se demarcar – a incipiente intelligentsia guineense faz-se cúmplice – e em certa medida até fiel aliado – do seu pretenso suserano quando este, por exemplo, na constituição de um elenco governamental, faz exclusivamente recurso aos seus fiéis vassalos e não a aqueles que, pela sua comprovada capacidade técnica e experiência profissional, sejam mais aptos para os desafios que se anunciam.

“Where the focus goes, the energy flows”
Mas, cá entre nós, se em vez de estar sempre a fazer chorar os nossos ilustres visitantes ou encher os nossos hóspedes de kudadi sobre as nossas diskarnas, que tal se nos propuséssemos fazer sorrir a nossa juventude?
E se em vez dessa famigerada política de vassalagem, que nos empobrece e humilha como nação, que tal se adoptássemos uma postura mais consentânea com os desígnios de dignidade e soberania pelos quais se sacrificaram tantos concidadãos?
Reparar as casernas dos nossos militares e proporcionar-lhes condições de vida e trabalho dignas e compatíveis com as suas atribuições é nossa tarefa. Nossa e só nossa! Em nenhuma circunstância devia a nossa miséria ser motivo de ostentação, exibindo-a a estrangeiros sem pejo nem pudor. Afinal o que é que se pretende com tais actos? Demonstrar a nossa pequeneza? Reivindicar o estatuto de vassalos perante a comunidade internacional? Ou simplesmente comprovar que 'si kusa muri, kusa ki matal' ? Provavelmente tudo isso, menos assumir a condição de uma nação soberana…
Da mesma forma, procurar o retórico ‘equilíbrio étnico’ no governo através do recurso sistemático e exclusivo aos vassalos não dignifica em nada os seus protagonistas. Se etnicizar os cargos públicos já é um acto desprezível, fazê-lo através da política de vassalagem é simplesmente miserável.  
Mas, mais do que lamentar ou condenar, o que mais importa actualmente é acreditar que, tal como têm insistentemente alertado os nossos jovens músicos de uns tempos a esta parte, es tera un dia i na sabi. E esse dia pode não estar assim tão longe... Sim, há indícios cada vez mais consistentes de que estamos próximos da data de ‘kanta poh’, do momento em que os guineenses, todos unidos e irmanados pelos mesmos ideais, excomungarão a ideologia do tafal-tafal e a política de vassalagem.
E quando esse dia chegar, convidaremos o nosso amigo Xanana a vir cá de novo, para visitar não os quartéis militares, mas sim as nossas escolas. E no final de cada visita faremos com que ele se ria à farta…
E tu, Estin, tu que tens sido apologista da política de vassalagem, já pensaste no lugar que a História te reservará? Lembra-te do que Amílcar disse há um bom tempo: ‘A História só reterá com honra os nomes daqueles que…
Adivinha o resto.
Adivinha e assume a tua liberdade. Liberta-te, para seres capaz de imaginar este país na sabura, onde ninguém terá que se avassalar para ter um lugar ao sol.
Rejeitar a teoria (e a prática) da política de vassalagem é um desafio que só os mais aptos saberão materializar. Por isso pensa, Estin, mas pensa muito bem na ‘ordem, a moral, a lei de tudo isto’ de que tens sido co-obreiro. E se o fizeres com honestidade e atempadamente talvez ainda consigas contribuir positivamente para travar esta catástrofe que temos vivido.
Mas se não o fizeres, Estin, terás que dar resposta, mais cedo do que possas imaginar, na imensa solidão que te será reservada, a esta questão: ke di bo, Estin? Ke di bo gosi ki ora di kanta tchiga?
É que dos inaptos não reza a História!


[1] Cf. ‘Nós, os do Makulusu

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