"As Orações de Mansata" e a farsa do poder
Certas experiências teatrais recordam-nos porque é que continuamos a fazer e a ver teatro, e a representação d' As orações de Mansata de Abdulai Sila, em Bissau, foi uma dessas experiências.
Por: Francesca Rayner (*)
Texto reproduzido
do site revistas.rcaap.pt
Foi o segundo
de dois espetáculos
no país natal do autor, e circulou numa digressão internacional
incluindo apresentações em Portugal, Espanha
e Angola. O Centro Cultural
Francês em Bissau, onde se apresentaram os
espetáculos, estava completamente lotado, obrigando alguns espectadores a sentarem-se nas escadas do auditório. O facto de ser
apresentado no Centro
Cultural Francês revela
a falta de espaços qualificados em Bissau para este tipo de projecto
teatral e uma
falta de investimento na Guiné por
parte dos decisores políticos. No entanto, espera-se que o sucesso desta
iniciativa leve a uma reconsideração do valor cultural e político de espetáculos como este por parte também da representação portuguesa em Bissau.
Com várias obras de ficção já editadas,
As orações de Mansata é
o primeiro texto
dramático de Abdulai
Sila a ser publicado na Guiné-Bissau. No entanto,
isto não deve obscurecer o facto de a própria
Guiné-Bissau ter uma história longa e rica de tradições performativas menos
baseadas em texto e mais
na canção, dança
e comédia, com uma forte componente física. De facto,
foi a inclusão destas
tradições na representação d' As orações de Mansata, uma adaptação de Macbeth de
William Shakespeare ao contexto da Guiné-Bissau, que conferiu
maior interesse e valor a este espetáculo. Confirma-se que as preocupações
de Shakespeare com o poder
e a corrupção, tal como são representadas neste espectáculo, não serão estranhas
à atormentada história política
e social da Guiné-Bissau. E ganharam um valor maior num espetáculo
em que o texto,
o movimento e a música criaram
imagens impressionantes da vida individual e colectiva
na Guiné-Bissau pós-colonial.
Aliás, o facto de o espetáculo reunir performers de Portugal,
Brasil, Angola, S. Tomé e Príncipe e Moçambique alargou a sua crítica aos mecanismos do
poder noutros contextos pós-coloniais
e trabalhou no sentido de uma noção especificamente lusófona dos prazeres e potenciais
perigos do espetáculo intercultural.
Enquanto que a primeira noite atraiu principalmente diplomatas e agentes culturais, com José Ramos
Horta em representação da equipa local das Nações Unidas, o realizador Flora Gomes e o próprio
Abdulai Sila em
representação da elite cultural de
Bissau, a segunda noite reuniu um público
mais diversificado entre os quais muitos homens e mulheres jovens. Também estiveram
presentes os participantes do workshop de interpretação realizado um ano antes, numa louvável
demonstração de solidariedade com os dois atores
da Guiné-Bissau que foram mais tarde escolhidos para
participarem no espetáculo.
O workshop tinha sido organizado pela Cena
Lusófona, sediada em Coimbra, que também organizou a digressão e publicou a peça na sua coleção de textos
dramáticos lusófonos. Neste sentido, foi notável como muitos membros
do público compraram não só o programa do espetáculo, mas também o próprio texto, e alguns deles podiam ser
vistos a ler
a peça antes
da entrada em cena
dos atores, confirmando assim a expetativa em torno do que
iria ser apresentado.
O espetáculo começou com uma abertura assinalável,
que foi (re)citada
com redobrada relevância já no seu final. Assim
que o palco se iluminou, todos os performers estavam amontoados dentro
ou em torno dos característicos carrinhos-de-mão usados em Bissau para
transportar todo o tipo de materiais. O facto de a carga, neste caso, ser constituída por pessoas em vez de produtos,
e de o público
não ter a certeza
se os performers em
cena estavam a dormir ou
mortos, funcionou como uma estranha premonição do que estava
para vir. Foi nesta
altura que o quadro inicial ganhou vida, tornando-se numa vibrante
cena de rua de Bissau
com indivíduos e pequenos grupos a cruzarem caminhos e
trocarem cumprimentos ou recriminações.
Depois desta cena, o clima mudou de novo em duas cenas onde um indivíduo foi abordado, inicialmente por três homens
e depois por três mulheres, atribuíndo-lhe poderes
que parecia desconhecer. Na segunda destas cenas, um homem passou a correr
e partiu um dos potes
de barro que as mulheres tinham deixado à beira
da estrada. O foco no simbolismo
do número três e a predição do poder atribuído a um indivíduo
impreparado relembra o encontro
entre Macbeth e as três bruxas,
mas, nesta adaptação contemporânea, as ligações entre
o poder espiritual e temporal foram desenvolvidas de uma forma
mais extensiva, e a vontade dos seis em atribuírem poderes a um indivíduo contra
a sua vontade foram localizados num
contexto político onde a
crença em indivíduos heróicos, que podem ser os salvadores da nação, tende
a produzir líderes
ditatoriais.
Quanto ao homem que partiu o pote de barro, Amambarka
(Rogério Boane), ele é a figura de Macbeth na peça, a pessoa
que conspira para tirar do poder o anterior Chefe Supremo, Mwankeh (Paulo Figueira), tornando-se depois vítima de uma conspiração semelhante por parte dos seus antigos aliados. Esta ênfase na circularidade do poder,
com base numa série de conspirações e contra- conspirações, significa que não
restou nenhuma figura heróica no fim do espetáculo, e, apesar das suas constantes
afirmações de que
os fins justificam os meios, todas
as personagens tinham sangue nas mãos. Numa cena particularmente
poderosa, os fantasmas, daqueles que Amambarka
torturou ou matou
para chegar ao poder,
regressaram para o assombrar com corpos destruídos, mãos ensanguentadas e histórias
de amizades traídas.
Nesta dura dissecação do poder, houve no entanto
vários momentos de humor refinado. Quando Mwankeh
chamou os seus conselheiros para uma reunião, o facto de entre eles se incluírem
elementos para tchumul-tchamal
(confusão e desordem) ou meker-meker (intriga)
indicava a inversão de prioridades dos governantes, enquanto a recusa
destes conselheiros em assumir
a responsabilidade pelo mais pequeno incidente demonstrava a
ineficácia dos responsáveis chefes. Tal ineficácia foi reforçada em palco através
de um arquivo de papel
constantemente pontapeado pelo chão - de conselheiro para conselheiro
- e, depois, por um movimento coletivo em que eles, vestidos de fato e gravata,
se viravam para revelar
pernas e nádegas
nuas. Esta sobreposição de comédia física
e verbal contagiou também duas cenas subsequentes que ilustravam a forma como os votos de
lealdade são facilmente quebrados quando
emerge um novo líder.
Na primeira destas cenas, Nkungha (Trindade Gomes da Costa)
a denunciou Amambarka a Mwankeh como
sendo um diabo que o tinha forçado a conspirar
para retirar Mwankeh
do poder. No preciso momento em que demonstrava esta coerção
física, Amambarka e os seus conspiradores entram
e assassinam Mwankeh, forçando Nkungha a um volte- face e jurando uma nova e longa lealdade
a Amambarka. No entanto,
Amambarka é ele próprio assassinado pelos seus antigos apoiantes – Yem-Yem (Ridson Reis) e
Djibisappoh (Wilson de Sousa) – mas após Yem-Yem ter matado
Djibisappoh, um Amambarka moribundo
levanta- se para assassinar Yem-Yem. A última palavra do espetáculo,
proferida por Amambarka, foi "zero", uma profunda condenação dos resultados concretos das guerras
e lutas internas
pelo poder como sendo devastadores para a nação
e para o povo que os líderes
dizem representar.
O quadro inicial com os carrinhos-de-mão foi então repetido no final do espetáculo, mas
desta vez as personagens pareciam mais visivelmente mortas do que adormecidas pelo que a noção de uma tragédia
nacional emergiu de uma forma mais clara.Embora
a maioria dos papéis
da peça fosse para atores,
Amambarka tinha também três esposas, neste espetáculo
interpretadas por uma actriz angolana, uma actriz portuguesa e outra actriz brasileira (Marleny Musa, Solange
Sá e Elane Nascimento). Tal como Lady Macbeth na peça
de Shakespeare, podemos ver que estas mulheres têm uma forte influência sobre Amambarka. Elas incentivam-
no a retomar o poder que perdeu dentro da elite governante, incitando-o a agir
como "um homem a sério"
e recordando-lhe que o afecto,
que elas lhe dedicam, se baseia na capacidade de as sustentar
financeiramente, provando, assim, que
também elas são
seduzidas pelo poder.
A multiplicação da figura de Lady Macbeth introduz
a questão poligâmica da Guiné-Bissau, e a inclusão
de três atrizes de diferentes contextos nacionais ilustra a forma produtiva na qual tradições
teatrais variadas interagem neste espetáculo. Os diferentes sotaques do português
mantiveram-se distintos mas, ao mesmo tempo, combinaram-se harmoniosamente, e os performers com formação em teatro físico
colaboraram de forma
natural com performers com
formação mais referida
à proferição de um texto. Havia,
na verdade, bastantes evidências da troca de saberes das
diferentes tradições cénicas
entre os artistas que participarem neste
espetáculo.
Destacava-se uma
interpretação assombrosa da actriz angolana com uma canção sobre os efeitos da guerra, que foi depois retomada por outros em palco, e
por várias vezes movimentos de dança
eram coordenados entre
todos os performers. Da mesma forma, as duas cenas com Nkungha podiam ter sido inteiramente
baseadas na fisicalidade, mas foi-lhes conferido um humor extra
pelo rigor com que o texto da peça foi dito. Os
três atores, que interpretavam os conselheiros espirituais (Igor Lebraud, Jorge Biague e Emílio
Lucombo), criaram em cena uma imagem coerente de autoridade apesar de - ou talvez justamente por - virem de três culturas
nacionais diferentes.
No entanto, os dois intérpretes da Guiné-Bissau, um dos quais
interpretou um dos conselheiros espirituais (Jorge Biague) e o outro Nkungha, foram particularmente apreciados
pelo público de Bissau. Durante o
espetáculo, ouviram-se muitos comentários
vindos da plateia, que variaram
entre o riso de reconhecimento - o reconhecimento
do que se sabe mas que não pode ser dito - e a convergência paradoxal de
admiração e reprovação relativamente à figura
de Amambarka, em muito devido à
excelente interpretação de Rogério Boane
neste papel.
Com um simples mas eficaz desenho de luz e um cenário de madeira criado especialmente por carpinteiros locais para este espetáculo e que podia
ser rapidamente adaptado de uma forma eficaz para as diferentes cenas, o espetáculo tinha
como componentes mais expressivas o texto de Abdulai
Sila, com uma forte carga
política e o trabalho dos atores.
Foi, certamente, um dos melhores
espetáculos a que assisti este ano, mesmo
sem levar em conta o esforço
enorme em criar e levar
o espetáculo a diferentes países. No entanto, enquanto que
o espetáculo em Bissau não podia ter corrido melhor,
a tragédia dramática da peça deu lugar a uma maior tragédia
da vida real na última semana da digressão quando a
Ministra da Cultura angolana proibiu as representações em Luanda três horas antes da entrada em cena dos atores.
A suposta razão para a proibição foi a falta de segurança
do edifício onde o espetáculo ia ser apresentado, mas considerando que foi
ali realizada uma programação durante
todo o ano, e que a Ministra tinha conhecimento prévio do espetáculo e das suas intenções, a
proibição foi provavelmente imputável a questões
de segurança do Governo Angolano.
Ironicamente, portanto, a representação dramática do poder, não isenta de aspetos paradoxalmente ligados à farsa, deu lugar a um episódio
que mantém em aberto as ambiguidades e eventuais receios
do poder político.
Muito provavelmente a proibição deveu-se à força
acrescida do espetáculo comparativamente com o texto impresso, porque embora o Governo Angolano
tenha consentido a circulação do texto no seu país, os espetáculos
iriam, certamente, atrair um público mais vasto e diversificado que testemunharia e reagiria
a esta exposição da farsa no exercício do poder.
Fica aqui registada a inquietação perante uma proibição
que nos parece inaceitável, esperando que tenha consequências na
reivindicação de liberdade na criação e circulação de práticas
artísticas. Além disso, e apesar
da referência a este incidente
nos jornais portugueses, não houve qualquer reprovação ou comentário por parte
daqueles que trabalham e que
têm responsabilidades nas artes cénicas
em Portugal.
(*)Francesca Rayner é Professora Auxiliar na
Universidade do Minho onde lecciona unidades curriculares da
graduação e pós- graduação em Teatro
e Artes Performativas e onde é Directora da Licenciatura em Teatro. A sua
investigação incide sobre a representação de Shakespeare em Portugal.
Nota final
para a identificação do espetáculo:
Título: As orações de Mansata Autor: Abdulai
Sila. Dramaturgia e encenação: António Augusto Barros. Interpretação: Amador Fernandes, Elane Nascimento, Emílio Lucombo, Igor Lebreaud, Jorge
Biague, Marleny Musa,
Miguel Magalhães, Paulo
Figueira, Ridson Reis,
Rogério Boane, Solange Sá, Trindade Gomes da Costa, Wilson de Sousa (Pepelinho)
Cenografia: João Mendes Ribeiro/Luísa Bebiano. Figurinos, adereços e imagem gráfica: Ana Rosa Assunção. Direcção musical e banda sonora: Jarbas Bittencourt. Movimento: Zebrinha. Desenho
de luz: Fernando Conceição. Kora: Braima Galissa. Vídeo: Andrzej Kowalski. Técnica de Máscara/commedia dell’arte: Filipe Crawford.
Capoeira: Professor Flajola.
Assistência de encenação: Igor Lebreaud/Sofia Lobo. Assistência de direcção musical: Ridson Reis. Operação de luz e vídeo: Rui
Valente. Operação de som: José
Diogo. Direcção de montagem: Rui
Valente. Produção: Eduardo
Pinto, Pedro Rodrigues, Rui Valente,
Sofia Lobo. Direcção de cena: Miguel Magalhães. Construção de cenário:
Carlos Figueiredo,
Paulo Santos, Rui Valente. Execução
de adereços: Cubos Activos (Tori), GPOD/Gonçalo Prudêncio
Ofice for Design, Ana Rosa Assunção, Maria João Robalo, Joana
Amado, Rui Valente. Execução de figurinos: Maria do Céu Simões. Montagem:
José Diogo, Rui Valente. Fotografia:
Augusto Baptista. Fotografia de ensaios: Eduardo Pinto, Sofia Lobo. Promoção e divulgação: Pedro Rodrigues, Eduardo
Pinto. Consultor de magia: Luís Rodrigues. Cabelos: Carlos Gago/Ilídio
Design. Estagiária de produção (Estudos Artísticos): Joana Amado. Local
e data de estreia: Teatro
da Cerca de São Bernardo, Coimbra, 17 de Outubro de 2013.
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