As Faces de Esperança em Bissalanca

...voluntariamente me deixo levar pela ambição de ver a face da esperança espelhada em cada gota de água bombeada pelas crianças de Bissalanca, tornando mais pertinente esta incessante busca por uma existência mais humanizante, logo mais feliz.
               
Depois de muitas andanças por este mundo fora, com vivências em todos os continentes, decidi voltar a viver numa tabanca. O mais lógico seria voltar para a tabanca onde nasci, onde ainda tenho amigos da infância, onde conheço a idade das árvores, o roteiro das nuvens na época chuvosa, o aroma do vento que sopra antes de cada temporal, a melodia das canções dos sapos nas noites sem luar.
Mas voltar para o lugar onde todos conhecem a minha árvore genealógica deixa-me despido de novas emoções, como as árvores sem folhas nos climas temperados durante o inverno. Voltar para a minha tabanca natal seria submeter-me a sensações associáveis ao reviver. Mas reviver e renascer são ambições diferentes, separadas pelo tamanho do sonho, costumava dizer um homem-grande nos meus idos tempos de inocência.
Procurar conforto e bem-estar num contexto isento dos serviços básicos, que a partir de um determinado momento assumimos como indispensáveis, é um desafio à capacidade de regeneração. Conceber uma nova vida sem acesso à rede eléctrica, sem água corrente, sem comunicações estáveis, é um estímulo à criatividade.
Em Bissalanca, a tabanca cujos mosquitos e melgas tão generosa e calorosamente me acolheram, as emoções renovam-se a cada dia que nasce. Algumas delas até tentam, pegando 'tras di seku ku modjadu', levar-me ao tempo da minha infância, mas há sempre algo de enigmático que não deixa. Vejo-me diariamente interpelado, perante um copo com água a meio, a confessar que o que conta é o que tenho, não o que podia ou devia ter tido. É um copo meio cheio, que pode levar mais água, não o meio vazio que num momento anterior esteve pleno.
É como o sentimento que em mim cresce quando vejo crianças ocupadas, durante o horário em que deviam estar sentadas na sala de aula, com tarefas que não deviam ser de ninguém. Manusear uma bomba de água fazendo recurso à força muscular, a única fonte de energia disponível, e depois carregar essa água em pesados baldes para distâncias que ficam para além do seu horizonte visual, não devia ser tarefa de uma criança. A água devia ir ter com elas em casa, usando caminhos próprios e aí permanecendo todo o tempo.  
Mas é com essa imagem que me vejo confrontado quase todos os dias, tendo aprendido a interpretá-la com recurso à magia que só a ambição de renascer proporciona. Assim, sem ser fatalista nem conformista, é nessa imagem e no espectáculo quotidiano nela engendrado que procuro as faces e as cores da esperança, a tal que sobre tudo e todos prevalece. É por isso que em cada exercício muscular vejo não apenas resiliência, mas também a irradiação da certeza de um amanhã mais risonho.
E um colorido amanhecer tento descobrir em todos os sorrisos, ciente de que, embora ainda ofuscada pelo espesso manto tecido pelas agruras da vida, a esperança encontra refúgio na face de cada criança da Guiné-Bissau.
Construir um imaginário colectivo de harmonia num contexto de profunda desigualdade e injustiça social é um exercício que também exige uma boa dose de autocomplacência. É por isso que voluntariamente me deixo levar pela ambição de ver a face da esperança espelhada em cada gota de água bombeada pelas crianças de Bissalanca, tornando mais pertinente esta incessante busca por uma existência mais humanizante, logo mais feliz.

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