O povo por testemunha

 

© Foto: A. Sila
 

 O povo por testemunha

" Miserável é o país que precisa de heróis." 

Bertolt Brecht, in  A vida de Galileu

 

Nada o deixava prever. Quer dizer, nada, é só uma maneira de dizer, porque na realidade, na realidade mesmo, ainda pairava algures, entre a irredutível paixão e a efémera redenção, o odor da dor. Odor de uma dor embutida na eterna ameaça de aborto. Paz, progresso, fraternidade e muito, muito mais… Tudo por que lutara e, harmoniosamente kibinidu, mantinha na sua mente prenhe de ambições. De sonhos. De convicções.

Moldada em tempos de brasa, a crença começara a murchar cedo demais, vítima de todas as virtudes da omnipotência, sequestradora da sensatez e do discernimento. Por isso se impusera no kala-kaladu da desgraça a pertinência de duvidar, de preservar o culto do pensamento crítico; daí a conveniência de acreditar que ‘dar nome a um mal era neutralizá-lo, quando não aniquilá-lo’.

Ciente do peso das suas convicções, enfrentava as agruras do quotidiano com uma tranquilidade que aos próximos até causava kudadi. Aparentava estar a leste de tudo… Àqueles que o ouviam e toleravam não se cansava, todavia, de proclamar que ‘tinha lido vários livros e travado conhecimento com vários grandes misantropos ao longo dos tempos, cuja companhia espiritual o tranquilizava e lhe fornecia parâmetros para medir os seus caprichos, anseios e antipatias”. Pretensioso ou ingénuo?

Ko nafata kon fow lorrai

Quando sem aviso prévio, e à hora menos conveniente, foi surpreendido com um endiabrado cacarejar de metralhadoras e o coro intercalado e desafinado de roquetes, fugiu para o bantabá e, sentado sobre uma pedra, enterrou a cabeça entre as mãos. Deu-se a mesquinhar a ausência do senso de decência nos que não longe dali se davam ao inglório trabalho de relançar o fútil filosófico debate em torno da matchundadi: seria miserável o país que não tem heróis ou pobre o povo que precisa de heróis?

E do nada, quer dizer, sem que nada mesmo o deixasse prever, desfilou mais uma vez, e com toda a lucidez, aquela imprudente cena incompleta de uma peça perpetuamente inacabada:

AMAMBARKA : … Não é novidade para ninguém que esses malandros têm o mau vício de exprimir com balas o que às vezes necessita só de boa conversa. Mas vais dizerme o que significa essa frase e porque te chocou tanto.

NKUNGHA: Pois é, Supremo Chefe... Eu não sei bem, depende muito do contexto, isso o Supremo Chefe sabe melhor do que eu. Mas talvez seja mais ou menos isto: em toda a história da humanidade só se conhece duas categorias de homens: a dos que têm a noção de dignidade, de honra... esses homens engrandecem a nação; os outros não fazem senão manchar essa honra.

AMAMBARKA: E eu faço parte de que categoria?

NKUNGHA: Sabe, Supremo Chefe, foi por isso que me chocou tanto ouvir isso...

A explosão de uma granada nas imediações pô-lo de sobressalto. Na estrada à frente, fugiam apressados e sobrecarregados velhos, crianças e mulheres, com a cor da desilusão irrepreensivelmente estampada na face. Cenas e sensações que tinha vivido antes. Inesquecível. Imperdoável.

Perante o inqualificável cenário, lembrou-se de uma declaração de um solidário e longínquo amante da arte: ‘Ao contrário da boa ficção, nesta realidade militarizada a falta de criatividade reina absoluta. Sempre a papel químico década após década’.

Olhou longamente para o céu e confirmou perante o povo, que apressado e aparentemente indiferente, procurava outras paragens: Infeliz a nação que precisa de heróis!


 

 



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