Quem dá mais?

 


 

Quem dá Mais?

( Ou a tragédia anunciada da nova geração de djilas di kuru [1])

 

“… o único ser que poderia talvez contemplar um espectáculo tão sem esperança, e abranger sua falta de sentido, teria de ser um deus. Era isso! Talvez os homens tivessem inventado os deuses para sentirem o que não podiam sentir, e achassem conforto na compaixão que os deuses sentiam por eles”[2]

Na viragem deste que a muitos títulos e em várias partes do planeta foi um ano de barbaridade suprema, não param de circular mensagens marcadas por uma flagrante ‘falta de sentido’, tão-somente replicando a velha retórica, ignorando, por convicção ou por conveniência, o pulsar do quotidiano dos novos ‘condenados da terra’.

É como se nada tivesse acontecido – e o que está a acontecer não fosse nada, absolutamente nada! Face à tamanha ‘falta de sentido’ (e de sentimento?) é todavia bem evidente que a realidade (entenda-se espectáculo) é por demais viva e colorida, bem patente aos olhos de todos.

O descalabro atinge uma dimensão tal que dá a impressão que até a compaixão que os deuses sentiam por nós se desvaneceu. E o mais interessante, talvez, é que muitos já nem se lembram de como nos sentíamos ao senti-la.

Intelectualidade desonrada ou amaldiçoada?

Face a esse espectáculo tão sem esperança, muitas interrogações e interpretações se oferecem e se acumulam. Uma delas, derivada de um absurdo alinhado ao contexto de miséria espiritual prevalecente, seria esta: qual o papel da intelectualidade guineense, mormente da sua politizada elite, maioritariamente alienada, despida de pensamento crítico e faminta de poder, que a tudo se predispõe para provar que, para todo o sempre, ‘os fins justificam os princípios’.

Adoptando a postura do protagonista do já citado romance de Richard Wright, que por sinal leva o título sugestivo de O homem que viveu debaixo de terra’ (já diz bastante sobre o personagem!), os politiqueiros e os pseudo-intelectuais cá da praça, incansavelmente e em defesa de causa própria, pregam aos quatro ventos que “… se o mundo tal como os homens o fizeram estava certo, então tudo o resto estava igualmente certo”. Sem ideias próprias, quais mercadores da desgraça, piamente acreditam que “Qualquer acção que um homem fizesse para sua satisfação – roubo ou assassinato ou tortura – estava certo.”

Legitimando a descrença

Preconceituosos, assumem que “o presente é eterno; o passado é reduzido ao agora; o futuro não existe…”, demonstrando cada dia e perante cada oportunidade que farejam, total despudor em exibir – assim na cara como nos discursos – as etiquetas de preço por que se deixam comprar. E o mais caricato (devia dizer triste?) é que, no passado recente, uma boa parte deles era tida como genuínos portadores de esperança, intérpretes de um fazer e de estar na política compatíveis com os desígnios do Homem Novo moldado por Cabral.

Hoje vendem-se ao desbarato a quem lhes prometer mais. Mais, que pode significar menos. Menos lealdade, menos respeitabilidade e, acima de tudo, menos dignidade. A muitos deles, sobretudo aos mais ‘nkurbadus’, certamente de nada valerão os avisos à navegação emitidos desde os “tempos novos de reconstrução”, popularizados e eternizados através de canções que marcaram todas as etapas da epopeia libertadora: “mundu ten ki rabida pa bu sedu algin na bu roson”[3].

Si fere ala…[4]

Trilhando exactamente pelos mesmos labirintos da traição e da falsidade, a nova e agressiva leva de djilas di kuru, à semelhança dos que os precederam, chegam precipitada e precocemente ao fim da linha (a tal “House of exile”, cantada por Jimmy Cliff), mesquinhando miseravelmente a mal-aventurança. Exibirão uma desvirtuada e descolorida etiqueta de ‘quem dá mais’, que todavia não mais merecerá a atenção de nenhum mercantilista do poder.

Porque não haverá nem conforto, nem os deuses sentirão compaixão por eles.

É que de djilas di kuru definitivamente não reza a História.



[1] Mercadores de tachos

[2] Richard Wright, in “O homem que viveu debaixo de terra”

[3] O mundo terá que mudar para te tornares alguém.

[4] Se nao houver saída

 

Comentários

Anónimo disse…
A nua face de uma realidade. Muito bom texto

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