Uma decisão binária

 

 

 

Uma decisão binária

“Os meus filhos terão computadores, sim, mas antes terão livros. 
Sem livros, sem leitura, os nossos filhos serão incapazes de escrever
 – inclusive a sua própria História.”

Bill Gates

Há um mês, no decorrer de um evento organizado com toda a pompa e circunstância, fui chamado ao palco para receber uma condecoração, uma distinção que ao fim e ao cabo não era (só) minha. A emoção experimentada sob os focos de luzes coloridas e de olhares curiosos despoletou em mim uma sucessão de sensações antigas, datadas de décadas, vividas na Catió da minha infância, nas noites de luar e de festa que intercalavam os dias de bombardeamento.

Enquanto subia os degraus da escada que dava ao palco, desfilava no meu cérebro uma cena inédita ocorrida numa dessas sessões de dança, animadas pelo exuberante Bacar 'djahlo', o melhor tocador de tambor que Catió conheceu. Uma jovem e descuidada mulher, demonstrando perícia artística sem igual, parecia ignorar um dado que se veio a revelar nefasto: o espectáculo não era (só) dela, nem (só) para ela. Manchada pelo que foi considerado manifestação de exagerado egoísmo, a insólita exibição que protagonizou foi premiada com manifestações de desaprovação e de desagrado. Não houve palmas à saída…

Quociente ou coeficiente?

Como que a quererem libertar-me das incómodas memórias do passado, estavam à minha espera dois compatriotas, em cujas faces se moldavam inequívocos sinais de graça e bem-aventurança: o académico Julião Sousa e o escritor Tony Tcheka. Companheiro de longa data e de muitas andanças, este último poderia, num outro cenário, facilmente adivinhar os motivos do meu indisfarçável embaraço.

Quando me dirigi ao púlpito para cumprir a praxe, enfrentando novamente holofotes e olhares, a minha mente encheu-se outra vez de imagens despropositadas. Embora sendo igualmente incómodas, dessa vez não eram do passado, antes do quotidiano (e com tentáculos estendidos no futuro imediato), decorrentes da catástrofe com que os criadores guineenses, particularmente os ligados à literatura, se vêm confrontados com acuidade crescente.

 Um país sem uma única biblioteca pública; sem uma única livraria digna do nome; sem um único prémio literário. Um país sem pudor nenhum em, ostensivamente, promover a iliteracia, o culto da ignorância e do obscurantismo, justamente nesta era dita do conhecimento.

Um sistema educativo que não inclui o ensino da literatura no curriculum escolar; que não se inibe  com a inexistência de um plano nacional de leitura ou algo que se lhe pareça; que, sobretudo, não se coíbe com a calamidade de manter cerca de metade das crianças em idade de escolarização obrigatória fora da escola.

Terá alguém a desfaçatez de produzir literatura meritória de algum reconhecimento num contexto tão indigente? 

 Entre o imaginável e o realizável

A cumplicidade com que fui recebido no palco pelos meus concidadãos Tcheka e Sousa dissiparam a percepção de ter havido um erro de casting. Ao receber o diploma da mão de um e a taça da mão do outro, ficou clara a função de intermediário que me tinha sido atribuída. Homenageados tinham sido na realidade a literatura guineense e, em particular, os escritores guineenses, todos eles, homens e mulheres. São eles é que, num contexto marcadamente hostil e depauperado, iam ousando moldar uma aurora promissora, em tudo diferente do macabro retrato da realidade contemporânea. Fazendo ecoar o hino da fé e da perseverança das colinas do Boé às quedas de Cussilintra, esses escritores, os mais jovens em primeira linha, mandavam uma mensagem consistente ao mundo, consubstanciada no ensinamento do escritor e filósofo alemão Johann Wolfgang von Goethe, em como nada é realizável sem que antes seja imaginável.

Foi provavelmente essa mensagem que foi interceptada e descodificada pelo júri, consagrada na Gala da Lusofonia, neste ano de 2024, que para a esmagadora maioria dos guineenses tem sido marcado por desafios, desilusões e descalabros que vão para além do imaginável.

Volvido um mês após o evento, interrogo-me se os aplausos que se ouviram na plateia no fim também não seriam (só) para a jovem mulher que naquela longínqua noite de luar, daquela Catió fustigada pela guerra e pelo sofrimento, dançara até à exaustão, em seu nome e no de todas as outras mulheres que naquele dia, pelos motivos que só elas conheciam, não o puderam fazer.

Sem pretender incorrer numa simplificação ingénua de questões complexas e de realidades díspares, não posso, todavia, deixar de registar a significância do “perpétuo início de histórias perpetuamente inacabadas”.

Comentários

Érica disse…
Por volta de 2005 ou 2006, quando eu estava no início da minha investigação sobre a literatura da Guiné-Bissau, apresentei um trabalho em uma faculdade em Caxias, uma cidade próxima ao Rio de Janeiro.
Comecei minha fala com os dados sociais do país e os altos índices de analfabetismo. Ao fim, uma estudante perguntou "por que alguém escreve em um país em que não há leitores?" Com meus 25 ou 26 anos, eu não tinha resposta. Hoje sei que quem se torna escritor o faz porque precisa dizer, só aquilo que é dito pode ser um dia ouvido.
Parabéns pelo prêmio!

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