Estudar e divulgar a obra de A.Cabral: uma missão actual

 Prefácio à biografia de Amílcar Cabral

Amílcar Cabral é mundialmente reconhecido como um dos maiores líderes de todos os tempos. O seu legado de liderança visionária, os seus ideais humanistas, a sua dedicação sem limites à causa da liberdade e justiça e a sua personalidade carismática são fontes inesgotáveis de inspiração e de motivação permanente para todos os africanos.  
Em tempos de feroz globalização do pensamento neoliberal, em que a questão da descolonização das mentes assume uma preponderância particular, estudar a vida e a obra de Amílcar Cabral é ao mesmo tempo uma necessidade e um dever.
É uma necessidade devido à urgência de reciclagem de paradigmas, isto é, de adopção de propostas regeneradoras, susceptíveis de fazer ressuscitar o sonho e a esperança num mundo mais justo, mais próspero e mais solidário.
Num contexto caracterizado pela opressão e exploração, Cabral foi capaz de, através de uma liderança inspiradora, transformar fraquezas em forças, reinventar a fé nas próprias capacidades, inculcar a certeza na vitória do progresso sobre a decadência.
Não foi magia nem dádiva celestial. Foi, sim, o resultado de uma acção pensada, da conjugação de ‘pensamento e acção’. Não foi por acaso que um dos seus ensinamentos mais difundidos durante o período da luta armada de libertação nacional foi expressa numa fórmula bem simples: ‘pensar para melhor agir e agir para melhor pensar’.
E para conferir uma perspectiva mais ampla à dicotomia acção / reflexão, no contexto da divisão da geopolítica da época, Cabral defendeu um princípio basilar: a independência de pensamento e acção. O célebre slogan “pensar pela própria cabeça” reflectia não só um sentimento de autonomia, mas sobretudo um inequívoco posicionamento político, filosófico e cultural perante os desafios contemporâneos.
É nesse quadro de assunção do desafio histórico e inalienável de (re)conquista da soberania e da dignidade que estudar a obra de Amílcar Cabral se torna um dever. Explorar o seu amplo legado de homem de cultura, de político visionário, de líder carismático, de nacionalista pan-africano convicto torna-se uma obrigação, uma via segura e profícua, na procura de saída para os grandes desafios que a África contemporânea, em geral, e a Guiné-Bissau em particular, enfrentam.
Dividido em 10 capítulos, o livro fornece ao leitor, de uma forma bastante elaborada e competente,  informações e dados essenciais à apreensão, etapa por etapa, do singular percurso e obra daquele que nas próprias palavras se declarou como “um simples africano que quis saldar a sua dívida com o seu povo e viver a sua época”.
E são justamente estes dois elementos, a revelação do processo de ‘ser africano’, numa conjuntura de dominação colonial alienante, e de ‘viver a sua época’, sempre em sintonia com os novos ventos da História, que constituem a essência deste livro de Peter Karibe Mendy.  
Nos dois primeiros capítulos, intitulados ‘Terra Natal’ e ‘Terra Ancestral’, são revelados aspectos importantes sobre a vida de Amílcar Cabral na primeira infância e na adolescência, respectivamente na então Guiné Portuguesa e nas ilhas de Cabo Verde.  São divulgados factos e detalhes que não aparecem com tanta clareza nas publicações biográficas anteriores.
Os meandros do despertar social e as motivações para uma exemplar acção revolucionária e patriótica em prol da libertação do jugo colonial português, são descritos com bastante detalhe no capítulo terceiro, que também cobre o período de formação académica em Portugal. Cidadão sensível à realidade de violência e miséria imposta pelo regime salazarista, e bastante atento aos “ventos da História”, Cabral aproveita a sua convivência com outros estudantes provenientes das então colónias de Portugal para criar as raízes de uma frente ampla de contestação e de emancipação, que veio a culminar na fundação das estruturas político-partidárias que lideraram as lutas de libertação nacional nos respectivos países.
Se no capítulo quarto (‘Regresso à Terra Natal’) se desvenda a dimensão de estratega e de visionário, é nos capítulos 5 e 6, que cobrem o período que vai da preparação para a luta armada de libertação nacional à preparação da proclamação unilateral da independência da Guiné-Bissau, que se revelam todas as credenciais de Cabral como político perspicaz, estratega militar, diplomata hábil e líder carismático, qualidades que fizeram com que fosse mundialmente encarado como fiel intérprete das aspirações e porta-voz dos movimentos de libertação dos povos colonizados, levando, por exemplo, o New York Times a declará-lo como "o líder do movimento de guerrilha anticolonialista mais bem-sucedido de África".
Depois de se afirmar como dirigente incontestável da gloriosa luta de libertação do seu povo, Cabral assume um protagonismo crescente na batalha que se trava a nível mundial pela independência dos países e pela liberdade dos povos sob jugo colonial e imperialista.  No capítulo 7 é apresentado Cabral o pan-africanista e internacionalista, um combatente solidário com "toda a causa justa do mundo".
Revelando toda a sua dimensão como intelectual e pensador nato, Cabral afirma-se como um escritor prolífico. Para além das publicações de carácter estritamente técnico, versadas sobre agronomia sobretudo, foi também autor de várias obras no campo da história, sociologia e cultura, sustentando uma corrente de pensamento original. O sucesso alcançado em todas as linhas de acção fez dele não só um líder respeitado em todo o mundo, mas também um alvo prioritário a abater. No capítulo 8, com o sugestivo título de ‘O Câncer da Traição’, são fornecidos detalhes sobre como o decadente regime colonialista português, com o apoio de forças imperialistas mundiais e a cumplicidade de traidores locais, implementou diversas operações de desestabilização do movimento de libertação e orquestrou manobras refinadas de “dividir para reinar”, que culminaram na eliminação física, a 20 de Janeiro de 1973, de um dos mais ilustres filhos de África.
Mas se na lógica das forças colonialistas e imperialistas decapitar o PAIGC era sinónimo de acabar com o exemplar e inspirador processo de libertação do povo guineense, a reacção popular ao assassinato do seu líder carismático demonstrou quão profundo e consolidado era o trabalho político-ideológico desenvolvido por Cabral. Assim, é descrito no capítulo 9, com o título ‘A Luta Continua’, um conjunto de iniciativas que foram tomadas pelo PAIGC, as quais, mais do que actos de vingança, revelaram a determinação de todo um povo em bater-se pela sua liberdade e independência. Precedida por um árduo, inédito e arriscado trabalho de realização da primeira sessão da Assembleia Nacional Popular, a proclamação unilateral da independência da Guiné-Bissau, que Cabral chamou de “nação africana forjada na luta”, aconteceu apenas 8 meses (24 de Setembro de 1973) após o vil assassinato do seu principal obreiro.
No último capítulo, o décimo, aborda-se aquilo que, no contexto actual, será provavelmente o mais relevante assunto deste livro: o legado de Cabal. Nas vésperas da celebração do centésimo aniversário do seu nascimento, somos todos interpelados à reflexão, partilha e valorização do legado teórico e prática revolucionária de Amílcar Cabral.
É, pois, em boa hora que surge esta biografia, redigida por um intelectual pan-africanista, cujas capacidades e convicções aprendi a valorizar desde os tempos em que, como investigadores no Instituto Nacional de Estudos e Pesquisa (INEP), fizemos dos desafios de liderança do país e do continente um dos principais temas de conversa, tendo constatado a partilha de um sentimento comum: uma profunda admiração por Amílcar Cabral.
Na Guiné-Bissau contemporânea – e um pouco por essa África fora – há situações de autêntico descalabro que requerem abordagens nos mesmos termos que Cabral e os seus companheiros privilegiaram desde o início do processo. Questões como a etnização da política e a politização da religiosidade, que ultimamente tantos males têm vindo a causar, são apenas a ponta de um iceberg que comporta a incapacidade da actual liderança africana, tomada no seu todo, de oferecer ao povo uma outra perspectiva de futuro, compatível com as legítimas aspirações a paz e progresso, isenta dos males da corrupção e dos fantasmas do colonialismo e da submissão.
Às políticas estéreis e desumanizantes subtilmente inculcadas pelo neocolonialismo global há que contrapor planos de erradicação da colonização mental – nas suas múltiplas facetas – bem como estratégias de desenvolvimento genuínas, ambos ancorados nos ensinamentos de Amílcar Cabral, no legado da sua liderança visionária e revolucionária.  
Nesse quadro, o verdadeiro desafio que actualmente todo o cidadão que ambiciona ser sujeito da sua História, e de qualquer intelectual, minimamente ciente das suas obrigações históricas, tem que encarar de frente é como transformar esse legado em factor indutor e promotor de progresso, liberdade e bem-estar.  
Assumindo esse desafio, iremos ao encontro do objectivo principal deste livro do compatriota Peter Karibe Mendy, que é, nas suas próprias palavras, “demonstrar a importância da liderança, centrando-se nos desafios políticos e intelectuais e nas realizações de um dos líderes mais eficazes de África do século XX.”

Bissalanca, Novembro de 2022.

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