A alegoria de Cobornel

Tal como o prisioneiro na alegoria da caverna de Platão, o djugude fidalgu tem a sua própria percepção da realidade: um mito que se cultiva.

 

A alegoria de Cobornel

“A História só reterá com honra os nomes daqueles que,
recusando-se a colaborar com os inimigos do nosso povo e da África,
forem capazes de dar a sua contribuição válida para o triunfo da nossa luta”
.

Amílcar Cabral

Quando, nos finais da década de 1960, o famigerado administrador colonial Guerra Ribeiro decidiu mudar o nome de Cobornel para Bairro da Ajuda, houve muita gente que, em nome da ‘resistência passiva’, recusou-se a acatar essa arbitrária decisão.  Ao novo nome estavam associados repressão, arbitrariedade, trabalho forçado, espancamento e demais barbaridades que caracterizaram o colonialismo português e que particularmente marcaram o reinado do dito administrador.

José Carlos Schwarz, Homem de Cultura e patriota, cantou, numa das suas mais célebres composições, a tragédia de Ntchangá, a mulher que viu morrer o filho que carregava às costas durante uma das sessões de trabalho forçado a que os ‘indígenas’ eram regularmente submetidos por Guerra Ribeiro no processo de construção do ‘seu’ Bairro da Ajuda.   

Após a independência, muitos guineenses que viveram os acontecimentos (ou que deles ouviram falar) acreditaram que, à semelhança do que sucedera com as estátuas, o nome Bairro da Ajuda ia juntar-se aos demais símbolos da violência e da dominação coloniais.

Pura ilusão. Houve muitas operações de rebaptismo de cidades, bairros e ruas em toda a Guiné independente, é certo, mas Cobornel (e toda a sua história de atrocidades) foi como que apagada da memória colectiva. E se calhar até da história da resistência anti-colonial. É que até a canção em homenagem a Ntchangá desapareceu.

Mas Cobornel já não é um caso isolado. Recentes acontecimentos indiciam intenções deliberadas que almejam, de forma subtil mas consistente, forjar uma nova narrativa da nossa História. Assim, perante o que se tem assistido recentemente, faz todo o sentido perguntar se esse ‘esquecimento’ terá sido um mero ‘acontecimento isolado’, ou antes, parte de uma estratégia consciente que visa moldar a memória colectiva a partir de novos paradigmas.

Entre a historiografia cognitiva e a historiografia normativa

O que terá a ver a Alegoria da Caverna, obra escrita por Platão uns 3 séculos a.C., com a Guiné-Bissau contemporânea? Aparentemente nada. Mas e as suas teorias sobre as formas de governo e de fazer política? E os seus ensinamentos sobre o conhecimento humano? E as doutrinas sobre o mito vs. realidade?    

Na verdade, por mais questionável que seja, o actual cidadão guineense tem muito de semelhante com o prisioneiro da caverna (retratado naquele que por muitos é considerada a maior obra de Platão), na mesma medida que a realidade que vivenciamos se assemelha mais a um pesadelo, tamanha é a desilusão e frustração.

Talvez por isso se verifique actualmente tanto empenho na reescrita da nossa História, um exercício que pode no entanto resultar num caso do tipo ‘nhambi-yasadu’. Pelo que se é dado perceber, a principal motivação dos protagonistas é, à semelhança de uma das interpretações da alegoria da caverna, inculcar no cidadão comum uma outra percepção das imagens projectadas pela fogueira, não a apreensão da realidade.    

Nessa base, não deve constituir motivo de surpresa se a componente normativa se sobrepuser claramente à cognitiva, ou até que seja a única a ser considerada. Aliás, é essa categoria de abordagem que tem sustentado certos ‘atropelos’ à História, os quais levaram a que as ruas de Bissau, a cidade-capital, tenham sido submetidas a operações de “cosmética toponímica”, que conduziram a uma situação duplamente caricata:

- ganharam novos nomes, em alguns casos de individualidades que nunca se identificaram nem com os interesses e menos ainda com a História do país;

- despudoradamente ignorou-se o nome daquele que foi o primeiro Presidente da República, o Comandante Luís Cabral.

História? Estórias

Independentemente das motivações ou justificações que estiveram por detrás de tais decisões, uma coisa é certa e garantida: a historiografia que vier a ser adoptada pelos novos escribas da corte não pode ser baseada só na narrativa (forçosamente efémera e narcisista) dos "vencedores". Existe uma outra fonte, fiável, abrangente e perene: a literatura.

O sentido histórico, o enquadramento teórico, bem como a fundamentação de uma explicação racional da acção do seu verdadeiro sujeito, encontram na expressão artística, em particular na literatura, os seus principais pilares e referências. Nela surge não só o relato contemporâneo do sucedido, mas também e sobretudo daquilo que, não tendo sucedido, podia perfeitamente ter acontecido. Numa frase, a literatura expressa não só a vivência dos agentes sociais contemporâneos, mas igualmente os sonhos, as frustrações, os ideais e as ambições do Povo, verdadeiro sujeito e autor da sua própria HISTÓRIA.

Qualquer outra iniciativa que ignore esse facto ou pretenda impor uma visão fantasmagórica da realidade e dos factos vividos não passará de estórias. Estórias como as de cobóis…

O Povo como testemunha

O nosso decadente sistema educativo público é a imagem perfeita do estado de Não-Estado a que chegamos.  Não há livros de História na lista de manuais escolares disponíveis. O pequeno número de concidadãos que têm o privilégio de frequentar aulas de História estão entregues a professores que não dispõem nem de uma preparação pedagógica apropriada, nem tão-pouco de um programa de ensino digno do nome. Com a degradação acelerada dos valores morais e sociais a que se tem assistido nos últimos tempos, paralelamente à consolidação da cultura de bari-padja, foram criadas as condições ideais para o surgimento de novos ‘heróis’.

Parcialmente amordaçado, permanentemente submetido a 'práticas nefastas' decorrentes da promoção do obscurantismo e do servilismo, o Povo continua todavia tendo a noção das coisas, assumindo o papel de fiel depositário dos valores ancestrais de dignidade e de honra. Ele sabe quem é quem, e certamente saberá, sempre, distinguir entre o que é e o que parece ser.

Erguer uma estátua ou dar um nome a uma rua ou avenida entra no exercício tradicional de (re)construção do imaginário colectivo – de fazer lembrar o que convém e de fazer esquecer o que incomoda. Essa prática tem tido na História dos Povos sempre dois momentos: um, efémero, imposto pelos "vencedores", e outro, eterno, que fica, de uma forma ou de outra, gravado na memória colectiva de todos quantos partilham a mesma identidade nacional.

Por isso, e apesar de todos os constrangimentos vigentes, acredito que um dia, certamente não muito distante, haverá nesta nossa Pátria Amada:

- o reconhecimento justo e público do contributo prestado à Nação por muitos heróis e mártires que hoje se pretende que sejam menosprezados ou mantidos no anonimato;

- uma placa a ostentar ‘Avenida Luís Cabral, primeiro Presidente da República da Guiné-Bissau’, quem sabe, justamente naquela que ele mandou construir nos primórdios da independência;

- a instauração de uma era de confraternização, envolvendo todos os guineenses, de todas as idades, credos e camadas sociais, para que finalmente “Cantem o mar e a terra / A madrugada e o sol / Que a nossa luta fecundou”.

Quando isso acontecer, isto é, quando definitivamente entendermos que todos somos 'ramos do mesmo tronco', esconjuraremos os fantasmas da caverna de Platão; provaremos a nós mesmos e ao mundo que somos um povo com elevado sentido patriótico e humanista, gente "capaz de fazer política com sabedoria e justiça"; Cobornel será de novo e para sempre Cobornel; e a canção de Ntchangá será entoada todos os dias, em todas as escolas.

Quando, enquanto cidadãos e educadores, incutirmos na mente e no coração da nossa juventude que, apesar de todas as adversidades que têm marcado a nossa história recente, un dia no tera na sabi, talvez finalmente entendam alguns dos nossos pretensos ‘heróis’ que não é por acaso que Cabral nos disse há tanto tempo que, no final das contas, a História só reterá COM HONRA os nomes de alguns e quais os critérios.

Comentários

Anónimo disse…
Fiquei arrepiado com o texto.
Eu acredito que, apesar de tudo que tinha e que está a conhecer no nosso país,
ainda há referências.
Meus respeito ao senhor se assim posso te chamar.
Bem haja a todos.
Rubilson Delcano disse…
Como sempre, lúcido e cirúrgico. Djarama pa es exercício di tcholona sintidu.
Raquel disse…
Obrigada, pelo raciocínio, ainda temos pessoas com a cabeça tronco e membros no lugar e que refletem bem. Sempre acreditei e continuo a acreditar que assistirei a mudança para o melhor, porque Deus é Pai e nenhum sofrimento é eterno.
Da era colonial só fiquei com a recordação de ter visto homens com uniforme a desembarcarem num helicóptero na minha cidade natal. Luis Cabral o homem que me fez consumir o produto Nacional(liti blufo, Sumo Anura, compotas de Bolama, Polpa de tomates de Có...)nesta época a Guiné-Bissau ainda era cidade limpa, e comprávamos cuscus no beco mas a cabaça era limpa e coberto com um pano limpo, não havia fogareiro no beco e muito menos se cozinhava na rua para depois expor a comida ás moscas. Eterna saudade do Homem que sonhou fazer da Guiné-Bissau a Suíça Africana. Que a sua alma descanse em paz. Amém Que Deus nos perdoe e nos traga mais um Luis Cabral.

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