Deih: uma estória de fraternidade em tempos de tafal-tafal

 


 Deih: uma estória de fraternidade em tempos de tafal-tafal

“… e quando a terra mata voluntariamente, aquiescemos e dizemos que a vítima não tinha o direito de viver. Estamos errados, é claro, mas não tem importância. É tarde demais. Pelo menos nos limites da minha cidade, entre o lixo e os girassóis da minha cidade, é muito, muito, muito tarde.”

Toni Morrison ("The bluest eye")

 A nossa Guiné vive um dos mais inquietantes momentos da sua História. Na realidade, não é tanto o momento em si, antes o acumular de momentos, momentos de descrença, de desamor, de apoquentação, de ausência de senso de perspectiva. Numa palavra, de kudadi. Sim, independentemente da posição em que se situe na (nova) hierarquia socio-política, forçoso é de se constatar que o nosso presente está prenhe de kudadi, kudadi de todo o tamanho e peso.

Depois do colapso do sistema educativo, do total descrédito do sistema judiciário, da entrada em estado de coma do sistema sanitário, é o desmoronar de todo o edifício identitário que se anuncia. Pelo meio, com a dupla e contraditória função de catalisador e de sacrificador, afirma-se um implacável processo de inversão de valores morais e sociais.

É uma nova alvorada em que se anuncia uma certeza inquestionável: nada será como dantes! Para o bem e para o mal. E é justamente dessa certeza e da apreciação (sem emoção nem comoção) do quotidiano que marca as (des)virtudes do processo nas suas diferentes vertentes que nasce ‘Deih’. Das estórias do dia-a-dia surge uma outra estória, ora cómica, ora dramática, sugerindo uma outra alvorada, moldando uma ambição genuína “lá onde a esperança é feita cativa”.  

Termo de utilização rara, tanto quanto o sentimento que exprime, deih reflecte essa preciosidade em que se tornou a verdadeira amizade, aquela que promove a fraternidade, se afirma isenta de toda a tentação de djanfa, imune aos efeitos (principais e colaterais) da nova ordem imposta pelos ideólogos do tafal-tafal.

Ambicionando contrariar a derrocada iminente da ‘antiga’ estrutura de valores morais e sociais, as estórias que compõem ‘Deih’ propõem um conceito de relacionamento que vá para além do comum, em que cada uma das partes, qual contrato vitalício, livre e incondicionalmente se compromete a fazer vincar os tradicionais valores da amizade e da fraternidade.

Para alertar o leitor / espectador dos nobres propósitos em vista, surge um djidiu de korá, logo na primeira cena, a anunciar solenemente e com toda a autoridade que se lhe reconhece, que deih não é só alguém de quem gostas, ou que desejas; deih também não é alguém do teu sangue. Chamas deih a alguém quando o sentes dentro de ti, quando sabes o que ele quer sem ele te dizer; ris quando ele está contente, choras quando tem um desgosto.

É assim feita uma proposta tão oportuna quanto regeneradora: podemos fazer da nossa Guiné aquela terra de “Paz e Progresso” que a todos foi prometida. Basta que cada um, antes que seja ‘muito, muito, muito tarde’, se revele capaz de sentir a dor que partilhamos e o sonho que comungamos. Por outras palavras: que se assuma e veja no seu próximo um(a) deih. Tão simples como isso…

Ah, e para que não surjam equívocos e não se deixe margem nenhuma para a procrastinação, a peça foi escrita e é representada na língua que nos é mais próxima do coração: a língua guineense.

 

Comentários

Eu sempre gosto de ler as suas obras. Que Deus lhe abençoe

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