A Última Tragédia: um romance da Guiné-Bissau que não perdeu a sua explosividade

 
                                        Abdulai Sila: Die letzte Tragödie. Foto: Ralf Julke

De Ralf Julke, Leipziger Zeitung, edição de 05.08.2021

Os romances geralmente se inserem na época em que foram escritos. Os bons autores estão atentos às tragédias e histórias dos seus contemporâneos, conseguem captar a ambiência do seu tempo. É também o caso do romance “A Última Tragédia”, de Abdulai Sila, agora publicado pela primeira vez em alemão pela Leipziger Literaturverlag.

Foi publicado pela primeira vez em português em 1995. Pois a terra natal de Sila, a Guiné-Bissau, foi uma colónia portuguesa até 1974. O seu romance ainda é sobre a época colonial. Foi escrito em 1984, conforme indicado no final do livro: Dresden, fevereiro de 1984. Abdulai Sila estudou engenharia electrotécnica na então RDA. Mais tarde, ele também estudou nos EUA. Hoje é gestor de uma empresa de comunicação na Guiné-Bissau. Com efeito, ter-se-ia desejado que o país encontrasse o seu caminho para um futuro pacífico após a retirada dos portugueses.

Mas o país tem sido abalado repetidamente por golpes e lutas. O rendimento médio é muito inferior ao da Europa. E não deixa de ser provável de aqui se tratar ainda do rescaldo da era colonial. Porque os ocupantes podem ter partido – mas a exploração continua. Está contida na bela palavra "globalização" que os habitantes do Norte rico utilizam para convencer o mundo de uma ordem económica mundial em que ainda vivem à custa dos países mais pobres.

E não conseguem a paz porque por detrás de todas as lutas pelo poder há sempre desequilíbrios económicos. É o que já está exposto nesta história, que se passa alguns anos antes do fim da ocupação portuguesa. Só que a história não é contada da perspectiva dos funcionários e administradores brancos, embora alguns deles apareçam nela. Sila toma a perspectiva de três pessoas, cada uma das quais representa a convulsão que se previa muito antes do fim da era colonial e que anunciava não só o fim da ocupação, mas também a ruptura das antigas ideias tribais.

Mergulhando profundamente na mentalidade dos seus protagonistas pretos, Sila também deixa claro como as ideias transmitidas à comunidade da aldeia sobre a vida e comportamento correctos tornaram possível aos brancos em África ocuparem todo um continente e consolidarem o seu poder, exercendo-o com astúcia e violência draconiana, semeando medo e desconfiança.

Não é sem razão que o régulo na história de Sila se refere todo o tempo ao “poder do pensamento”. O régulo é o chefe da aldeia, e ao mesmo tempo também o cobrador de impostos para os brancos – uma  ligação ao poder e, ele próprio, à mercê do poder. Vários capítulos do livro tratam da sua dura prova de força com o recém-nomeado administrador dos portugueses. Uma prova de força que poderia ter acabado fatalmente para ele.

Não faltam exemplos das sangrentas medidas punitivas dos ocupantes, ainda que Sila utilize todos os meios narrativos para levar os leitores para o vasto espaço da dúvida. O que é afinal verificável e credível se os oprimidos não têm seus próprios meios de comunicação, estando dependentes do que ouvem dizer? Qual é a história verdadeira? Já que os detentores do poder também aproveitam as suas oportunidades para denunciar o que se ouve contar, para falsificar a história à sua maneira.

São todos iguais, onde quer que esses tipos governem: sabem ocupar ou desacreditar os media e gerar poder com mentiras e encobrimentos. E não só nas ditaduras. Nos EUA, acabamos de ver durante quatro anos que isso também é possível numa democracia aparentemente funcional. O mundo não está dividido entre o bem e o mal, segundo nos fazem crer os contos de fadas.

Mesmo Sila, no final da sua história, acaba por questionar tudo o que contou de acordo com o lema "Uns dizem..." e "Outros dizem..." E qualquer pessoa familiarizada com os jornais regionais saxões sabe como este princípio é ideal para ofuscar todos os acontecimentos, para fazer da verdade uma questão de negociação e para tomar os leitores por tolos. Um princípio do qual os negadores do coronavírus ou das alterações climáticas sabem como tirar o máximo partido. Alguém conta sempre uma história completamente diferente.

Mas o romance de Sila não é uma reportagem. Os seus heróis são de certa forma também representantes de todos os habitantes vivos do país, os régulos, os criados, os velhos sábios (que de certa forma representam a consciência tribal), os padres e aqueles que são levados a resistir. E também pela velha superstição, que neste caso torna a vida difícil para a menina Ndani, porque ela nada pode fazer contra a afirmação dum tal djambakus de que há um espírito maligno nela.

Toda a aldeia o toma a sério. Ela não vê outro caminho senão partir, trabalhar para os brancos e torcer para que o boato não destrua também a sua vida futura.

No final, a sua vida é destruída. Não pelo velho feitiço, mas sim pelo mesmo chefe branco com quem o Régulo já se tinha metido, sabendo muito bem que a única forma de se defender contra os ataques  dos brancos é através de planos inteligentes. Por outro lado, foi o Régulo que tornou possível a Ndani o seu grande amor, da mesma forma que, habilmente, mandou construir a primeira escola na aldeia e trouxe o jovem professor por quem Ndani então se apaixonou.

Foi também ao professor a quem ele ditou o seu "plano", o seu sonho, cuidadosamente moldado em frases, de como se ver livre dos portugueses. Aqui está aquela outra resistência que quase sempre é ignorada quando se trata do fim do colonialismo – uma resistência baseada no conhecimento, no "poder do pensamento". Tal como aconteceu em Leipzig, que experimentou como os poderosos ficam desamparados quando os oprimidos já não se acobardam e retiram a sua confiança e subserviência. O lema é aprender a pensar. É precisamente o projeto de Dona Linda que ajuda neste sentido, facto que faz parte das contradições no desenrolar dos acontecimentos. Pois ela via na criação de escolas para os pretos o caminho certo para finalmente colonizar os habitantes da colónia, ensinando-lhes a fé cristã. Assim, os padres formaram os primeiros professores na convicção de que seria possível mudar as antigas crenças dos nativos fazendo-os decorar a Bíblia.

Que isso não é suficiente para suprimir as antigas tradições e melhorar o destino do povo, é um facto para o qual já chamaram atenção os autores Joachim Oelßner e Faida Tshimwanga no seu livro Großfamilien-Bande, que é uma coletânea de 19 contos do Congo. Datam de décadas depois da história de Sila e têm lugar no Congo. Mas é precisamente isto que mostra como é difícil para a África avançar para o futuro perante esta dupla história: resolver os conflitos alimentados pelo colonialismo e, ao mesmo tempo, lidar com a emancipação tardia que Ndani e o jovem professor representam, vivendo o seu amor, mesmo que isso não seja pretendido pelos velhos costumes tribais.

E também não é por acaso que precisamente o seu amante se torna vítima dos brancos vingativos. Pois é precisamente esta autoconfiança com que os governantes não sabem lidar. Isto é igual em todo o mundo, também porque os que lutam pelo poder não são os inteligentes e sensíveis, mas sim os insensíveis, de fraca personalidade. Para eles, o poder é sempre uma muleta e um substituto. Em todas as sociedades.

É por isso que a história de Sila não nos parece completamente estranha, porque mesmo no nosso mundo nada perfeito deparamo-nos repetidamente com estes tipos. Eles adoram hierarquias e adoram mostrar às pessoas quem está no poder. Eles amam a vingança e o ressentimento. E é precisamente este Régulo, praticamente intangível, que se nos torna familiar justamente pela maneira  como se procura livrar daqueles portugueses invasores sem que eles encontrem novamente um motivo para se vingarem com violência sangrenta.

Porque essas pessoas sabem como se vingar. Compram testemunhos e deixam desaparecer o professor, que é deportado para S. Tomé, criando em Ndani aquele sofrimento que a faz ir ao porto ano após ano na esperança de voltar a ver o amante. No final, a própria Ndani se dissolve nos elementos, e a sua história é questionada. Será que a história foi mesmo assim? Será que Ndani e o professor sequer existiram?

O final é como se Abdulai Sila duvidasse do seu próprio romance e da sua legitimidade. Quem tem afinal o direito de contar a história? Mas na verdade esse questionamento é ainda mais ambíguo, porque ao fazê-lo Sila também questiona a interpretação oficial dos acontecimentos. Porque os perpetradores preferem sempre que as histórias permaneçam no nevoeiro, e que as pessoas duvidem do que foi feito às vítimas.

Na Alemanha, vivemos numa época em que os crimes do colonialismo alemão estão a ser postos em dia, ao mesmo tempo que os intérpretes habituais da história afirmam não se poderem comparar com o Holocausto.

Se podem! São as mesmas invasões de poder, as mesmas brutalidades contra os indefesos. E é o mesmo espírito mestre, mesmo que a dimensão do Holocausto já não seja tangível na sua brutalidade. No entanto, os mestres coloniais alemães não se comportaram um iota melhor do que os ingleses, portugueses ou belgas. Eis por todo o lado essa falsa superioridade dos europeus vingativos que acreditavam ter o direito do seu lado, declarando simplesmente os povos oprimidos como sendo primitivos e atrasados.

Lentamente, há também uma consciência crescente de que, com o fim da era colonial, essa usurpação apenas se transformou, camuflada atrás de um véu de aparência económica, embora a brutalidade seja exatamente a mesma. É por isso que o ano de 1984 também é um padrão. Pois a história em si parece tão presente que é preciso procurar na enciclopédia para saber quando é que os portugueses realmente saíram do país.

A editora publicou o livro na sua série de literatura portuguesa, embora seja, de facto, o primeiro livro de um autor da Guiné-Bissau. E, portanto, uma verdadeira descoberta, porque as literaturas da África estão longe de estar presentes na Alemanha. A África é ainda, em grande parte, terra incógnita a este respeito. Embora – como se pode descobrir no livro de Abdulai Sila – muito nos seja surpreendentemente familiar.

Também no que diz respeito ao recalcamento, conforme podemos ler no epílogo: "Há até pessoas que andam todo o tempo a fazer masturbação intelectual, a dizer que o colonialismo nunca existiu. Porque se aquelas tragédias e matanças e torturas e misérias e corrupções e poderes de abuso que foram contados é que caracterizaram aquilo que se chama de colonialismo, então o colonialismo não acabou. Das duas uma...  Imagine-se!"

Uma afirmação bastante traiçoeira que Sila aqui faz, sem mais nem menos. Afirmação essa que questiona também as narrativas do presente. Qual delas é certa? Ou será que uma é tão verdadeira como a outra – precisamente porque o que constitui a essência do colonialismo nunca desapareceu?

Os ricos do Norte também deviam responder a isto. Se se atreverem a encarar sua própria história.

 

Abdulai Sila, Die letzte Tragödie, Leipziger Literaturverlag, Leipzig 2021, 19,95 €.

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* A versão original, em alemão, pode ser lida aqui.

** Tradução da Prof.a Rosa Rodrigues

 

Comentários

Unknown disse…
Oi, meu nome é Beatriz e sou brasileira. Conheci A Última Tragédia por um amigo de Guiné-Bissau que estuda comigo aqui no Brasil, Paulo Anós Té. Gostei muito do livro, li em uns 3 dias, e estou ansiosa para ler mais dos seus escritos. Cá estou eu! Abraços.

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