Nos bastidores do kafumban

(c) Safiatu L. Sila

Mundu ten ki sabi / Pa no odjau di utru manera.

Mundu ten ki rabida / Pa bu sedu alguin na bu roson.

 Cobiana Djaz  - “Paulo Nanki”

Que os politiqueiros da nossa praça, por hábito ou por mera conveniência, tenham que manter-se agarrados à prática de kafumban mesmo depois das campanhas eleitorais, já não surpreende. Agora, que certos concidadãos, alguns deles vistos (e que certamente quererão continuar a ser vistos) como pessoas de bem, enveredem pela mesma via, isso já é preocupante.  

A trágica morte do jovem Bernardo Catchura é daqueles acontecimentos que nos abalam, nos apoquentam sobremaneira e, dando uma outra dimensão ao acontecimento, invadem o nosso quotidiano, revelando toda a nossa pequenez. É daqueles momentos de kasabi que nos interpelam a todos. A todos como quem diz… Quer dizer, a todos quantos, por incúria ou ingenuidade, ainda acreditam que a vida humana tem algum valor, que a dignidade deve prevalecer sempre e, acima de tudo, crêem que todos nós guineenses somos (ainda e sempre) “ramos do mesmo tronco”, com os “olhos na mesma luz”.

Bu dia ki ka tchiga, i ten ki tchiga!

Conjugando o seu talento e as suas aptidões como jurista, músico e activista, Bernardo Catchura revelou um dinamismo e sentido de responsabilidade só comparáveis aos daqueles que naqueles idos tempos de luta contra o obscurantismo e a dominação estrangeira serviram de exemplo para os da minha geração.  Pôs tudo ao serviço do país e da causa em que acreditava. Num país tão carente de referências positivas, ele era um dos símbolos dessa nova geração de portadores de esperança.

Pelo que fez e como o fez, ele conquistou o respeito de todos quantos com ele partilhavam os mesmos ideais de ‘paz e progresso’. Esse respeito foi-lhe negado quando há dias esteve doente. Depois de morto, há ainda quem lhe queira faltar ao respeito. E é isso que não é tolerável. Não é justo. É ignóbil.

Si garandi di kasa bida djugude…

A morte prematura de um jovem promissor como o Bernardo Catchura obriga-nos, tal como infelizmente tem sido o caso em repetidas ocasiões no passado recente,  a pôr em causa certos credos e convicções que trazemos dos nossos tempos de inocência.  É que de certas pessoas e de certas mandjuandadis já vimos de tudo e nada mais nos surpreende. Mas de outras… francamente!

Depois da autêntica revolta social originada pelo acontecimento, e certamente devido à pressão feita – de forma exemplar, diga-se de passagem – pelos companheiros do malogrado e pelas associações juvenis com as quais colaborou, não faltaram artistas a desfilar no palco, um a seguir ao outro, cada um a querer riantar o ‘djongagu que (consciente, mas inconfesso) se imaginava carregar.    

Assistiu-se ao desfile de vários aprendizes de djambakus, uns procurando fantasmas onde bem sabem não existirem; outros armados em puritanos, verdadeiros artistas da palavra. Produziram uma peça trágica e decepcionante, diria até cómica, não fosse a ocasião que a justificou. Tudo numa vã tentativa de explicar o que, sendo inaceitável, é também inexplicável, ingloriamente insistindo em atirar areia aos olhos dos mais incautos. Mas que desilusão! Que falta de humanismo!

I ka sabura ki tene bos

Depois do comportamento violento, desumano, das autoridades policiais perante os jovens que esta manhã organizaram a vigília em frente ao Ministério da Saúde, o que importa já não é só a morte por alegada falta de oxigénio; já não é só a falta de ética profissional, nem tão-pouco de pudor da parte dos profissionais de saúde; já não é só a ‘teoria do avestruz’ assumida por certos dirigentes e responsáveis do sector da saúde, não. Muito longe disso.

O que mais dói e preocupa no meio de tanta desgraça é a certeza de que nada vai mudar, que não vai haver nenhum inquérito sério e conclusivo, que a diskarna nos hospitais e centros de saúde vai continuar a marcar o modus operandi, que pessoas que prestaram juramento de salvar vidas vão continuar a afogar vidas. Cruel e impunemente…

É doloroso dizê-lo assim, mas… aqui deixo um apelo, uma súplica até,  aos que do alto dos seus poderes e de sua presunção ditam as regras desse jogo tão nefasto: basta!

E aos que, indiferentes ao sofrimento das vítimas do sistema, abusam do acesso privilegiado que têm aos meios de comunicação estatal, e em alguns casos às redes sociais, também vai um apelo: não sejam tão hipócritas, nem tentem cobrir o céu com uma peneira. É que, ontem como hoje, ‘pubis ka buru’ !

O Bernardo Catchura não mereceu tanta falta de respeito. E sendo certo que essa Guiné-Bissau de sabura, pela qual ele se bateu até à morte, vai se afirmar um dia, lembrem-se que, como bem advertiu José Carlos Schwarz, “I ka sabura ki tene bos”. Por favor lembrem-se bem disso…

E se esse exercício vos levar a mudar de rumo, quem sabe, talvez consigam honrar o juramento feito de salvar vidas e assim contribuir para que não mais haja um único concidadão, criança ou adulto, a morrer por falta de oxigénio, nem mulheres grávidas vítimas do desleixo que reina em todo o lado.  Mas se não o fizerem, certamente não serão capazes de deslumbrar essa nova Guiné-Bissau em forja, de sabura e de... saúde!

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