Crónica de uns livrinhos abençoados
Aconteceu há uns anos atrás e sem que nada o deixasse prever. Depois de me instalar na minha nova tabanca e
de cumprir com as imposições tradicionais para ser aceite como ‘fidju di tchon’,
tinha chegado o momento de me dedicar a uma das minhas missões não confessadas:
contribuir para a elevação do nível da literacia na comunidade.
Enquanto procurava as vias mais adequadas para a concretização dessa ambição, não é que me chega um
email da Profa. Giselle Ribeiro (UNILAB), informando do desejo de uma colega
sua, a Profa Inês Cardoso (York University), de identificar uma “comunidade com carência de
acesso a materiais de leitura” para efeitos de doação de livros...
O resto da história é
narrado com alguns detalhes aqui (páginas
38/39). Foram mais de dois semestres de colaboração activa, que envolveu, para além dos estudantes canadianos (autores dos livros), também estudantes guineenses na UNILAB, os quais, sob a orientação da Profa Giselle, contribuíram bastante para que os contos tivessem um sotaque mais guineense.
Os livros resultantes da iniciativa foram entregues aos destinatários em Setembro passado, logo no início do ano lectivo, e pode-se imaginar a alegria da criançada.
O texto que se segue foi a expressão da minha gratidão e contentamento por ver pessoas de diferentes países e condições sociais, voluntariamente, colaborarem de forma tão apaixonada na prossecução do nobre ideal de proporcionar oportunidades de educação para todas as crianças do mundo.
Do elefante e dos caçadores
Há um provérbio
muito popular nesta zona de África que diz que não é razoável pretender abater
um elefante logo no primeiro dia que se vai à caça. No nosso meio tradicional e
rural, caçar é ao mesmo tempo um processo de aprendizagem e um acto de coragem.
É aprender mais, ousando; ousar mais, aprendendo. Ousar sair da aldeia, da
‘zona de conforto’, e expor-se ao incógnito; é aventurar-se num meio pleno de
riscos, surpresas e incertezas, tendo como motivação maior o desejo de cumprir
uma tarefa indispensável à sobrevivência colectiva, sendo que essa atitude é
sempre socialmente bastante reconhecida e apreciada. Daí que ir à caça também seja
considerado um acto de solidariedade, de generosidade até, se se tiver em
consideração que o produto da caça é sempre partilhado pela comunidade na sua
globalidade, sem discriminação nem exclusão.
No mundo moderno
e contemporâneo, caçadores continua a haver muitos. Os locais de caça é que já
não são os mesmos. Já não é na floresta – um espaço delimitado, que em toda a
harmonia alberga animais, plantas e espíritos – que se vai à caça. Vai-se, sim,
num outro tipo de floresta – esta feita de blocos de betão e cimento – que em
toda a balbúrdia alberga bolsas de valores, empresas multinacionais,
instituições financeiras, etc. E o resultado dessa caça é algo com que quase
ninguém concorda, mas que poucos estão em condições de questionar: 1% da
população detém 99% dos produtos da caça, resultado de uma distribuição feita sob
as mais refinadas formas de discriminação e exclusão.
Não, não é minha
intenção elaborar teorias sobre as desigualdades e as ameaças que a dita ‘nova
ordem’ internacional engendra, nem tão-pouco conjecturar acerca das
consequências nefastas dessa forma de distribuição da riqueza mundial. Apetece-me,
sim, enaltecer o contributo que a Professora Inês Cardoso e os estudantes do programa
“Portuguese and Luso-Brazilian Studies” da York University, no tão longínquo Canadá,
prestaram através desta que à primeira vista parece ser uma simples acção
curricular/académica, aparentemente restrita no tempo, a priori condenada ao esquecimento. Ao fazê-lo, desejo
particularmente realçar a parte não visível dessa iniciativa: o espírito
humanista que guiou toda a equipa ao longo do processo, a dimensão e o valor da
solidariedade espontânea e voluntária, a demonstração de altruísmo, sentimento
intrínseco a todo o ser humano mentalmente saudável, seja ele cidadão de um
país ‘rico’ ou da ‘periferia’.
Os livros que
resultam deste trabalho colectivo não irão satisfazer as necessidades dos
alunos de uma única sala, nem tão-pouco cobrirão as prementes necessidades
daqueles que, devido à conjugação de vários factores enraizados na injustiça
social, não dispõem dos recursos mais elementares para uma aprendizagem
adequada. O objectivo também não é esse, convenhamos. De igual modo, os alunos beneficiários
podem até não se rever em algumas das estórias contadas ou nas ilustrações utilizadas.
No entanto, quem conhece o meio em que serão usados os livros sabe que o seu
valor simbólico ultrapassa todo e qualquer benefício material imediato que se
possa imaginar. Nesses livros estarão patentes virtudes humanas que o tempo se
encarregará de consolidar e aprofundar. É que a partir desse exercício
académico e ficcional, os autores – hoje jovens estudantes, amanhã potenciais
decisores mundiais – ficarão ligados de forma indelével a um país e a uma
realidade que provavelmente nunca conhecerão, mas a que jamais ficarão
indiferentes; serão eternos portadores de nobres sentimentos que, indubitavelmente,
os tornarão cidadãos com um outro horizonte sociocultural, mais abrangente e
mais descomplexado, logo cidadãos mais humanistas e mais solidários.
Foi por tudo isso
– e porque bem ciente estou de que, ontem como hoje, continua válido o
princípio de que não se deve pretender abater um elefante logo no primeiro dia
que se vai à caça – que não hesitei um segundo sequer em abraçar a iniciativa.
É também por isso que me regozijo desde já com a possibilidade de os alunos da
escola da aldeia de Bissalanca terem, não os livros em si, mas uma prova concreta
de que ainda há margem para, todos juntos, continuarmos a acreditar num mundo
mais solidário, mais justo.
Uma palavra de
louvor, pois, à Professora Dra. Inês Cardoso, pela valorosa iniciativa, e à Professora
Dra. Giselle Ribeiro, docente na UNILAB, que em boa hora intercedeu a favor da
nossa causa.
Um grande bem-haja
a ambas!
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