Um Régulo para a estação chuvosa


 
Este país tem-nos habituado a muitas surpresas. E tanto assim tem sido que, por conveniência ou por autocomplacência, muitos de nós têm vindo a adoptar uma postura que, vista de fora, pode indiciar atitudes ambíguas como resignação, diskarna ou até mesmo indiferença. “Djitu ka ten”, tem sido o credo daqueles que, de desilusão em desilusão, desenvolveram a habilidade de inventar antídotos para todos os kasabi desta terra. E não têm sido poucas, essas situações que desembocam nos tais kasabi.
Uma dessas situações é a que foi gerada pelo discurso com que o PR brindou os cidadãos guineenses, aqueles que demonstraram o elevado sentido patriótico de ouvi-lo, no último dia do seu mandato de cinco longos anos.
Eu gosto do teatro, que me seja permitido confessar isso mais uma vez e antes de mais nada. Mas do teatro como expressão artística, feito com o mínimo de profissionalismo, sobretudo quando ao talento dos actores se junta alguma criatividade do encenador. E quanto mais cómico, melhor!
O último discurso do PR pode bem servir de inspiração para uma peça teatral do tipo macbethiano, daquelas que dão para se entreter à boa e à guigui, e para logo a seguir (re)pensar; para se emocionar mesmo a valer, se não der para chorar antes. Não me refiro à forma, que normalmente é o critério de base do público menos exigente, mas sim do conteúdo, aquilo que atrai a atenção e provoca a delícia dos espectadores mais avisados, daqueles que se dão ao trabalho de procurar através da mímica e naquilo que (não) se diz, o verdadeiro sentido das palavras e as reais aptidões do actor.

Mais vale nunca do que tarde
Num momento em que o país assiste impavidamente ao colapso do sistema educativo público, com um ano lectivo em que os alunos das escolas públicas não tiveram nem sequer quarenta dias efectivos de aulas, aparece um PR a fazer o balanço final do seu mandato sem uma única palavra sobre o assunto! Como diz o povo, seria cómico se não fosse tão grave.
Saber alienar-se da realidade e imaginar-se (devo dizer assumir-se?) num mundo completamente diferente é um dom artístico reservado a poucos actores. O PR parece ser um deles. Parece não, definitivamente é, e já vou explicar porquê.
Uma das imagens de marca do PR é ignorar completamente a Educação, a Cultura e tudo o que qualquer cidadão minimamente habilitado reconhece como o caminho para o empoderamento pessoal e colectivo, e assume como o fundamento do processo de construção do imaginário colectivo, da identidade nacional, da coesão social. A Educação é - e isso é por demais sabido e reconhecido - a pedra angular de qualquer política de desenvolvimento, a aposta de todos os políticos com visão e dos países que almejam o progresso, a paz social e um futuro risonho.
Mas em vez de falar de futuro e de progresso, o PR habituou-nos, qual actor nkurbadu, a uma retórica enfadonha em torno do pot-pot, de ‘mão na lama’, nunca ‘mão na caneta’ ou ‘mão no livro’. Claramente, privilegia o obscurantismo (e a esta altura compreende-se porquê), em detrimento do conhecimento, da ciência, da tecnologia. Como economista que afirma ser, devia ao menos entender que, hoje em dia, não há nenhuma actividade produtiva, nenhum sector da economia que pode desenvolver-se sem uma componente tecnológica adequada, por mais elementar que seja, que o conhecimento é o principal capital de qualquer país!
Ao longo dos seus cinco longos anos de mandato, pouco (para não dizer nada) se importou com a Educação, com o Saber, com a Ciência. Não visitou uma única instituição académica pública até recentemente. Quando, na última semana desse mandato, decidiu finalmente dar um passeio até uma universidade, cometeu dois “pecados mortais”: preferiu uma instituição privada e falou de… empreendedorismo, o que, nos termos em que o fez, é o mesmo que um incitamento ao ‘desenrasque’. “Débrouillez-vous”, lembrem-se, tinha ordenado Mobutu aos seus concidadãos, e viu-se qual foi o resultado.

Quem não tem não pode dar
No seu discurso do dia 31 de Dezembro de 2018, naquele que em princípio devia ser o último discurso de fim de ano do seu mandato (que terminou no dia 23 de Junho embora pareça indiferente a isso) o PR também fizera tábua rasa da crise que se verificava no sector educativo, a braços com três meses consecutivos (!!!) de greve dos professores, com o ano lectivo claramente comprometido já nessa altura.
Como eu me sentiria aliviado se, em vez de estar a repetir-se de uma forma que tem tanto de ingénua arrogância como de insuportável fastio, que é o primeiro PR eleito a chegar ao termo do seu mandato, ele tivesse a hombridade de reconhecer que esse facto se deve a uma conjugação de multitude de casos que – diga-se de passagem e em abono da verdade – fogem ao seu comando. Desde logo, e como o todo o mundo reconhece, surgem dois factores decisivos, que vão para além da sua vontade (ou falta dela):
(i)                A presença – por demais prolongada e bastante humilhante – de forças militares estrangeiras, com a missão de estar permanentemente a puxar-nos as orelhas como se crianças irresponsáveis e imbecis fôssemos, ferindo a nossa dignidade enquanto nação e como cidadãos;
(ii)             As sanções das Nações Unidas (aplicadas há tanto tempo e sem fim à vista) aos principais chefões militares, facto que para além de também ser humilhante, é sintomático do clima de incerteza que ainda reina no país e da mais que evidente incapacidade de exercer as funções mais elementares de soberania: a de tomar conta de si mesmo.
Como eu me sentiria deveras aliviado e bastante reconhecido se em vez de se apropriar de um “mérito”, que não é pessoal, longe disso, o PR tivesse a sabedoria e a humildade de reconhecer que o seu verdadeiro “mérito” – esse sim pessoal, intransmissível e inconfundível – tem a ver com o facto de ter sido o único PR a nomear 8 (sim, oito!) primeiros-ministros num único mandato de cinco anos.
Eu que o conheço desde os ‘tempos da outra senhora’, sei das suas virtudes. Por isso não o culpo, nem tão-pouco me deixo surpreender. Afinal, os ‘problemas que ele está com eles’ na educação/ensino são por demais conhecidos. Mas, cá entre nós, tratar-se-á de um trauma assim tão melindroso, insuperável durante toda uma vida? Mbé...
Se sim ou não, só o futuro o dirá. O que importa reconhecer todavia é que, ontem como hoje, quem não tem não pode dar!

Tempestade na baloba de reinança
Qualquer que venha a ser a magnitude da tempestade que se instalou e evoluiu ao longo do mandato do PR – e independentemente da dimensão dos danos principais e colaterais que tenha causado ao país e ao seu sacrificado povo – o certo é que ele não é o único culpado. Muitos são-no por vontade própria, muitos mais por omissão. E nessa longa, longa lista há um actor de peso: o Partido que o fez eleger.
Nesse contexto, é deveras triste e preocupante constatar que quando se observa mais de perto o panorama político guineense contemporâneo, há um outro factor que tem muita (e tem continuado a ter ainda mais) relevância e preponderância: o culto da ignorância, o peso do obscurantismo. São justamente essas as raízes, lembrem-se, de outros males que se manifestam no nosso dia-a-dia e em relação aos quais também temos sido incapazes de fazer valer a verdade: impunidade, incompetência, corrupção, tribalismo…
Já não é suficiente ter dois terços dos deputados - e alguns influentes membros do governo - na situação de analfabetos funcionais (na definição do Professor Paulo Freire), decisores do sector energético que nunca ouviram falar da Lei de Ohm, economistas que escandalosamente se baralham quando se referem a conceitos básicos como sejam os indicadores económicos. Como se esse quadro não fosse suficientemente desolador, adopta-se uma estratégia de bloqueio à Educação, de banalização do conhecimento, situação que desemboca no clima da absoluta apologia da barbaridade que caracteriza o exercício do poder político.
Quem semeia vento sabe que não colhe mampataz…
É deveras preocupante reconhecer que apesar da iminência da tempestade, o guineense comum aparentemente não se preocupa com a dimensão dos danos que poderão ser causados. Não está formatado para isso, convenhamos. Pensar no amanhã é um luxo a que poucos se podem dar actualmente. As exigências do dia-a-dia a isso obrigam.
Por conseguinte, provavelmente indignado mas certamente ciente da sua condição actual de vassalo, o guineense aceitará um régulo para esta estação chuvosa. A sabedoria popular tem a resposta, mas perante tanta incerteza e desilusão acumulada, talvez haja quem se dê todavia ao trabalho de perguntar: “E o tempo de chuva deste ano quando mesmo é que vai acabar?”
Com as mudanças climáticas na ordem do dia, tão imprevisíveis quanto indefectíveis, não acredito que haja um meteorologista que se atreva a dizer. Mas o djambakus de Kandjafra certamente saberá.

PS: O canal de Geba é traiçoeiro e muito perigoso. Qualquer tempestade pode ser fatal: não tem sinalização.

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