Narrativas da Guiné-Bissau
Entrevista concedida em 2013 a Suely Santana (*) no ambito da sua tese de doutoramento no Centro de Estudos Afro-Orientais da Universidade Federal da Bahia sob o tema "Narrativas da Guiné-Bissau - A nação na 'trilogia' romanesca de Abdulai Sila".
Entrevista com o escritor Abdulai Sila
Diante das dificuldades em encontrar informações que julgava
necessárias para suplementar a análise acerca do escritor Abdulai Sila e de sua obra, no mês de agosto do ano
de 2013, contactei com o escritor via correio eletrônico consultando-lhe acerca
da possibilidade de me responder algumas questões. Sila se colocou à minha
disposição e, então, no mês de outubro enviei-lhe um questionário que foi
respondido prontamente e me enviado no mês seguinte do mesmo ano. As respostas
ao questionário foram de extrema relevância para a leitura da obra do escritor
a quem agradeço imensamente. Em seguida reproduzo, na íntegra, o questionário
com as respostas.
Suely Santana.
Numa certa entrevista publicada aqui no Brasil, o sr afirma
que tem a convicção
de que a literatura, sem ser doutrinária, nem estereotipada, pode contribuir
para a mudança cultural que se impõe. Qual o tipo de mudança que se impõe hoje à Guine-Bissau e como o sr acha que a literatura pode contribuir para essa mudança?
Abdulai Sila. Eu acho que toda e qualquer
mudança tem como protagonista principal o cidadão.
Quando essa mudança se pretende duradoura e abrangente, isto é, extensiva a
toda a comunidade ou à nação de que esse cidadão faz parte, então o protagonista não é o cidadão individual, isolado, mas sim o colectivo de cidadãos, unidos
por algo que tenham em comum, partilhado, que os motive e mova na mesma direção, empreendendo uma acção conjunta/colectiva.
Esse algo (que também pode ser chamado de Cultura) tem a ver, por um lado, com
elementos subjetivos/pessoais, tais com as aspirações, as expectativas, a ambição de cada um, e, por
outro lado, com factores que em última
instância se relacionam
com a identidade colectiva e o sentimento de unidade e de pertença
a um
todo maior, superior,
comum, partilhado. Essa natureza bidimensional intrínseca a
qualquer processo de mudança, põe em evidência a relevância de dois factores básicos: a
Educação (componente individual) e a
Cultura (conjunto de valores - os herdados e os moldados - assumidos colectivamente). Visto nesta perspectiva, a verdadeira mudança que se impõe hoje na Guiné-Bissau deve ocorrer, em simultâneo e de uma forma proativa, a dois níveis: na
Educação e na Cultura, na mentalidade/atitude do cidadão (individual) e nos novos padrões sociais e morais (colectivo). Note-se, a propósito, que na sociedade guineense ocorreu, em menos de uma geração, uma mudança radical na estrutura de valores morais, fazendo com que, por exemplo, o individualismo e a apropriação pessoal do bem comum (roubalheira e corrupção generalizada) ganhassem primazia, em detrimento da solidariedade e do sentido de justiça, que são valores tradicionais próprios à nossa Cultura. Esta situação e tudo o que à volta dela anda, com as consequências catastróficas que se conhecem,
só pode ser erradicada apostando na Educação do cidadão e na promoção de novos valores culturais, compatíveis com a legítima aspiração a uma vida mais condigna
para aqueles que têm vindo a
ser marginalizados. E é
justamente nisso que a
literatura se revela como um
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instrumento fundamental, na medida em que
fornece ingredientes para reflexão e propõe vias e modelos de sociedade susceptíveis de ganhar
a atenção e preferência do cidadão leitor,
o que no fundo acaba por ter uma influência naquilo
que o cidadão comum elege como estilo de vida, na sua atitude perante o seu
próximo, no valor que dá a certos compromissos que individual e colectivamente
tem que assumir.
Suely Santana. O sr acha possível a literatura Bissau-guineense impulsionar algum tipo
de mudança, mesmo sendo esta literatura escrita na língua dos ex-colonizadores,
língua que a maioria dos Bissau-guineeses não fala?
Abdulai Sila.
Sem
menosprezar o papel que desempenha e a influência real que a grande maioria dos
concidadãos que não usam a língua do ex-colonizador tem, é preciso ter em conta
que, na prática, é justamente a pequena minoria, isto é, aqueles que tiveram o
privilégio de aprender e usar essa língua, que decide sobre as grandes questões
nacionais. São os membros dessa minoria que dominam no Parlamento, no Governo,
na gestão dos negócios do Estado, etc. Impõe-se portanto encontrar uma
forma que leve
essa minoria detentora
do Poder do Estado a entender e,
na medida do possível, tomar em devida conta a legitimidade das reivindicações
a mais solidariedade, mais justiça social, mais harmonia, mais desenvolvimento
que a grande e muitas vezes amordaçada
maioria tem. Acho que a literatura, enquanto recriação artística da realidade,
pode contribuir - de uma maneira subtil e simples, mas eficiente - para que as grandes questões (quer a nível
local como global) sejam colocadas na agenda dessa minoria privilegiada
detentora do Poder. E dependendo da forma como essa abordagem é feita, a
literatura (no nosso caso concreto sobretudo o teatro) pode influenciar
sobremaneira o processo de criação de consensos em torno dos grandes temas, bem
como as opções políticas ou outras que essa minoria
faz ou deixa de fazer.
Suely Santana. Na condição de cidadão, escritor, intelectual, empresário, como o sr acha
que pode contribuir para banir a injustiça
de grande parte do país ainda
ser analfabeta? Gostaria que o sr falasse um pouco mais sobre sua experiência como alfabetizador.
Abdulai Sila. Já
mencionei a importância que a Educação tem no processo de afirmação e promoção do indivíduo
como cidadão ciente
dos seus direitos
e deveres e como
membro ativo de uma comunidade. É um complexo
processo de tomar e dar em que ambas as partes envolvidas,
isto é, o cidadão e a sociedade, contribuem para a
realização de objetivos comuns, saindo ambos
a ganhar. Um
cidadão alfabetizado tem
maiores chances de realização
pessoal e pode dar melhor contributo na prossecução dos objetivos comuns
de desenvolvimento e bem-estar. É
preciso lembrar que sendo o cidadão o protagonista principal,
não pode haver progresso sustentável ou duradouro sem que haja uma
capacitação adequada desse ator, ele mesmo sendo
sujeito e objeto do
progresso. Quando uma
sociedade não faz o suficiente para que o cidadão domine as ferramentas
necessárias e indispensáveis a uma melhor atuação/ contribuição na ampla e colectiva
tarefa de desenvolvimento, essa
sociedade estará não só a minar as
bases do seu progresso, mas também
a praticar uma
injustiça perante o cidadão, que se vê duplamente penalizado, na medida
em que limita a sua afirmação como
indivíduo e reduz
os benefícios de que pode usufruir como elemento
da sociedade. No contexto de uma sociedade que
se viu durante séculos submetida a domínio estrangeiro,
em que o cidadão comum esteve sempre marginalizado e oprimido, a maior expressão de liberdade e justiça tinha que
advir da habilitação desse cidadão de modo a assumir o seu papel como obreiro
do progresso e do bemestar que lhe foi negado. Ora, o primeiro passo desse
processo de emancipação tem que passar pela Educação e, no caso de concidadãos
adultos, a Alfabetização. É pois nesse
contexto de luta pela emancipação e de combate à injustiça que me alistei como
voluntário logo no primeiro
ano após a conquista da independência nacional. Foi
um trabalho apaixonante,
que marcou a minha vida para sempre.
O contato com os meus concidadãos que viviam nas zonas
mais remotas, que tinham concluído uma fase
dolorosa da sua História e se preparavam
para viver o sonho de "Paz e Progresso”,
como consta no nosso Hino Nacional, permitiu-me, naquela fase crucial de
formação da minha personalidade, ter um
conceito próprio de riqueza e pobreza,
de poder e autoridade, de conforto e
privação. Essa experiência foi tão cheia de ensinamentos que deu uma outra dimensão à minha vida. Muito
provavelmente eu não seria o cidadão que sou
se não tivesse passado por essa experiência.
Suely
Santana. As literaturas africanas
escritas em língua portuguesa, pelo menos aqui
no Brasil, vêm ganhando um espaço ainda tímido, mas bastante
significativo nas universidades. Entretanto, a Guiné-Bissau ocupa um
espaço ainda mais tímido. Ao que o sr
atribui isso?
Abdulai
Sila. Por motivos que julgo serem sobejamente conhecidos e
que têm a ver também com o regime retrógrado do
colonialismo português, a Guiné-Bissau teve, à data da sua
independência, um deficit significativo em
vários domínios,
incluindo na literatura . Felizmente, esta situação está a mudar
radicalmente e novos e talentosos
escritores estão se revelando a um ritmo que era difícil de prever há poucos anos
atrás. Por outro lado,
a situação de crônica instabilidade social e
política que tem caracterizado o país
de uns tempos a esta parte fez com que surgisse um certo desinteresse por ele, facto
que provavelmente terá
contribuído para que a sua produção literária continue sendo
menosprezada. Tenho certeza que quando o país recuperar dos males que o atormentam
actualmente e dessa forma
proporcionar a publicação de mais obras literárias, essa situação vai mudar e a nossa literatura e os nossos escritores ganharão maior
interesse e visibilidade.
Suely
Santana. Sabemos que o sr é um dos fundadores e
um dos proprietários de uma importante editora no país. Gostaria que o sr falasse um pouco da política da Ku Si Mon. Qual o perfil identitário que caracteriza a editora?
Qual o Política editorial,
quanto à escolha dos textos, formação dos conselhos editoriais, financiamento etc.? Há alguma parceria com escolas, universidades,
governo ou outras organizações?
Abdulai
Sila. Como dissemos desde o início
das nossas atividades, já lá vão quase vinte anos, a nossa editora
é acima de tudo uma aposta com
várias vertentes, sendo uma·delas "a
aposta no espírito num ambiente cada dia
mais materialista, mas que aspira
a regenerar -se através dos
alimentos espirituais". Somos uma pequena editora num país onde o hábito de leitura
ainda é
muito incipiente, mas com uma grande ambição:
quebrar o mito que
existia em torno do livro. Por isso
é que atualmente damos prioridade à
promoção de obras de ficção
de jovens talentos. Da lista de autores publicados nos últimos anos constam jovens
de 18, 21 e
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anos de idade. Esses jovens são os principais protagonistas da mudança que
pretendemos: banalizar o livro, tornando-o
acessível a toda a gente.
Não publicamos poesia,
mas temos a maior colecção de
contos tradicionais, em edição bilíngue. E aí entra um outro elemento importante:
a promoção e valorização das nossas línguas locais e da sabedoria milenar que
só através delas se transmite. Não beneficiamos de nenhum apoio do Governo ou de
qualquer outra organização e
desenvolvemos toda a nossa atividade na base de trabalho voluntário dos membros
da editora. Essa autonomia tem um significado especial para nós - sobretudo em termos de liberdade editorial - e explica em parte a
decisão de retomarmos as atividades depois dos grandes prejuízos que tivemos
durante a guerra de 1998/99, em que a sede da editora ficou destruída por
obuses logo nos primeiros
dias.
Suely Santana.
Gostaria que o sr falasse um pouco da sua participação,
da importância do INEP e sobre qual a sua avaliação do papel
do INEP diante das demandas políticas e intelectuais da Bissau-guineense do presente?
Abdulai
Sila. O INEP foi acima de tudo um
grande sonho concretizado,
uma estrutura que na altura serviu
para a afirmação da intelectualidade guineense. Criado num contexto de regime monopartidário, o INEP conseguiu
impor-se como um centro de pesquisa e de produção acadêmica onde reinava a
liberdade de expressão e o debate aberto e livre de idéias e projectos de
sociedade. Concebido por Carlos Lopes, o INEP pôs na prática um
modelo de funcionamento inédito,
com uma direção constituída por gente nova, com muita vontade de provar a sua
capacidade. Tive o privilégio de fazer parte do projecto desde o início, sendo responsável por tudo quanto
tinha a ver com a parte técnica
e tecnológica. Até ser parcialmente destruído durante
a guerra de 1998/99, o INEP foi considerado, pelos
resultados obtidos e pela
influência que tinha a vários
níveis, um dos principais centros
de pesquisa acadêmica
da África Ocidental. Depois
dessa guerra, infelizmente, o INEP não mais conseguiu
atingir os patamares anteriores . Já não consegue uma produção científica regular que alimente
as suas publicações e aos bocados vai-se
desmoronando um dos maiores feitos
e principal referência dos intelectuais guineenses do final do século passado.
Suely Santana. Qual
o papel que o sr atribui ao intelectual hoje, na Guiné-Bissau
e na África, de um
modo geral.
Abdulai
Sila. O intelectual africano tem hoje, mais
do que nunca, uma responsabilidade acrescida. Há um processo de
libertação e de reabilitação que iniciou
há pouco mais de
meio século e que, apesar do relativo
progresso alcançado, ainda continua muito aquém das expectativas. Depois de um longo, violento e doloroso período de
dominação estrangeira, o intelectual africano
está perante um novo desafio,
o da reafirmação do Homem
Africano. Tratase
de uma batalha que tem que ser travada em várias frentes, e que deve culminar na
libertação da mentes dos vestígios e sequelas do colonialismo e do neocolonialismo, para que consigamos
aquilo que Amílcar Cabral sempre exigiu:
caminhar com os nossos
próprios pés e pensar pelas nossas próprias
cabeças. E é justamente nessa batalha crucial que o intelectual africano
é chamado a intervir com major
responsabilidade, quer individual,
quer coletivamente. No caso concreto da Guiné-Bissau,
onde os nível de autoconfiança e de solidariedade
mútua,
adquiridos
sobretudo durante os difíceis mas gloriosos
anos de luta pela independência, têm vindo a desagregar-se de uma forma dramática como resultado da incapacidade dos diferentes governos de garantir a satisfação das aspirações mais elementares das populações, o intelectual tem
uma tarefa adicional: fazer com que a mensagem de fé e de esperança se mantenha
viva e
atual.
Suely Santana.
Nessa nova era de interconexões, contatos e encurtamento das distâncias, o intelectual africano
teria hoje, um papel específico no mundo? Qual seria?
Abdulai Sila.
Como sabe, houve durante muito tempo ideias
e teorias estereotipadas, preconceituosas e racistas,
segundo as quais o africano era um ser inferior, incapaz de tomar conta de si. Essa imagem está a
mudar perante os fatos e hoje começa a ganhar cada dia mais consistência a
convicção de que Africa é o futuro. E nesse novo futuro que se vislumbra para África e
para a humanidade,
o intelectual africano tem que
assumir um papel
de primeiro plano: ele tem que
assegurar que o povo africano caminhará
de cabeça erguida, lado a lado, com
todos os outros povos do mundo.
Suely Santana. Existem diferenças entre o Abdulai
Sila escritor, o empresário e o engenheiro de formação? O
que articula essas três dimensões,
aparentemente, tão distintas? ·
Abdulai
Sila. Antes de mais, eu não me considero
empresário, pelo menos no sentido
clássico do termo, e não me comporto como tal. É verdade
que ao longo da minha
carreira profissional
tive que empreender, participar na criação de algumas estruturas
julgadas necessárias à prossecução de
objetivos específicos, mas que não têm nada a ver com a obtenção de
lucro financeiro.
Assim, por exemplo, depois da fase em que reinou a censura, e
na ausência de uma estrutura que fosse capaz de proporcionar a publicação das muitas obras literárias que
estavam engavetadas, juntei-me a dois amigos e
criamos uma editora. Tem o estatuto de uma empresa
privada, mas essa editora não faz lucro nenhum
em termos financeiros, antes pelo contrário.
Por isso posso afirmar que, embora
aparentemente com facetas e interesses profissionais distintos, Abdulai Sila é sempre
uma e a mesma pessoa. Tem uma dimensão única: a ambição de fazer aquilo
que Amílcar Cabral quis para si mesmo: viver a sua época e pagar a dívida que tem com o seu povo.
Suely Santana. A sua formação
em engenharia realizada no exterior,
somado ao fato de o sr. ser um
empresário no ramo
das telecomunicações, de algum modo, contribui ou influencia no seu processo
de criação literária?
Abdulai
Sila. Talvez, mas não
tanto. Não posso negar que a minha formação
acadêmica (que ocorreu durante um período
de tempo relativamente curto) e o exercício da minha atividade
profissional primária (tenho
outras ocupações, como já disse, para além da que o ganho do meu sustento requer) influenciam a maneira como analiso
alguns fenômenos ou acontecimentos
e, por conseguinte, a minha atitude e reação em determinadas circunstâncias, mas a verdade é que, como cidadão (que sou a tempo inteiro), os meus sonhos e aspirações falam mais alto
e ditam aquilo que escrevo.
Suely Santana. Amílcar Cabral é reconhecido em grande parte do mundo como um grande
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intelectual
e uma das lideranças mais destacadas nos processos de independência dos países africanos, em especial, da Guiné- Bissau.
Qual a influência dele na sua obra literária e posições políticas?
Abdulai
Sila. Amílcar Cabral é -
pela
sua humildade, inteligência, carisma,
dedicação à causa comum, sentido de responsabilidade social e histórica - aquela pessoa que nós todos
gostaríamos de ser. Ele deve ter sido uma pessoa muito
feliz! A sua vida é
uma fonte de inspiração inesgotável,
sobretudo nesta fase da nossa História em que as coisas não estão a correr como seria legítimo esperar. Sempre que pensamos nele (nas suas palavras e nos seus
atos), ganhamos mais coragem e motivação para
levar de vencida esta fase turbulenta em que nos
encontramos. Ele foi um visionário acima de
tudo, um cidadão que teve um sonho, o de
liberdade e progresso para o seu povo e para toda a
Africa, e lutou com toda a sua capacidade e
inteligência, como ele mesmo dizia, pela concretização desse sonho. Essa
aspiração a liberdade e progresso mantem-se válida, pelo que é nossa tarefa, a
geração que se seguiu à dele e de todas as outras, assumir o desafio e fazer o
que deve ser feito para honrar a sua memória e a de
todos os seus camaradas, que em
circunstâncias históricas particularmente difíceis, foram capazes de dar o exemplo que nós hoje só temos
que seguir.
Suely
Santana. Ndani, o Régulo
de Quinhamel, o Professor Mutundu, Baldwin, Mbubi, o que do
pensamento, da luta e da vida de
Amílcar Cabral traz esses personagens?
Abdulai Sila. Uma coisa muito simples, mas fundamental: a luta pela dignidade. Só quem viveu sob um
regime opressor e retrógrado como foi o regime colonial português pode entender o que
significa essa luta pela dignidade. E essa luta não é solitária, ela faz parte de um projecto maior, isto é, a construção de
uma sociedade onde reinem a igualdade, a
justiça, a solidariedade e o progresso. Sendo todas essas personagens vítimas do sistema de segregação e de repressão,
elas têm em comum, cada uma na sua época histórica, contexto político e situação
geográfica, a mesma ambição de um mundo diferente para melhor, construindo uma nação unida, harmoniosa e próspera.
Suely Santana. Em
sua opinião, qual a
importância da literatura africana
para o mundo e, em especial, a literatura africana
de língua portuguesa, para o Brasil?
Abdulai Sila. Por motivos sobejamente conhecidos, todo o
africano nutre um sentimento especial
pelo Brasil
e de uma maneira geral por todos os
que são descendentes dos povos que
durante vários séculos foram submetidos às
formas mais ignóbeis de injustiça e humilhação, incluindo a escravidão. Chegou o tempo de fazer uma espécie de ajuste de contas com a História, isto é, de nos olharmos olhos nos olhos, de nos abraçarmos e, acima de tudo,
de dialogarmos. Sabendo que ainda existe por aí, e às vezes sob as formas mais sutis,
muita "historia mal contada", é
urgente pôr os pontos nos ii, como se costuma
dizer. Por isso e para isso, há que estabelecer um novo e
privilegiado canal de comunicação que permita um diálogo permanente e conhecimento
mútuo, sendo que a literatura é certamente
uma das melhores opções para
tal. Nesta era que se diz de comunicação, os africanos têm
um novo desafio a vencer no âmbito da nova imagem que pretendem dar de si mesmos ao mundo: têm
que passar da postura de
consumidor passivo
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a
de um produtor ativo de todo o tipo de produtos
culturais modernos, incluindo o livro. É evidente
que ainda persistem alguns obstáculos de
relevo, incluindo preconceitos instituídos há
muito tempo, mas nada que não possa ser demolido por essa nova e gigantesca onda que já se faz sentir e ouvir, e que traz
consigo a redenção
do Homem Africano depois desse longo e doloroso período de dominação econômica, politica e cultural estrangeira.
(*) Suely Santana é Doutora em Estudos Étnicos e Africanos pelo Centro de Estudos Afro-Orientais da Universidade Federal da Bahia.e Professora de Literatura na Universidade do Estado da Bahia.
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