Em nome da Pátria, da Dignidade e da Sagrada Esperança
Em nome da Pátria, da Dignidade e da Sagrada Esperança
“E
enquanto não podemos nos entender
porque só um lado de nós cresceu,
temos de nos matar uns aos outros.”
– Luandino Vieira,
in “Nós,
os do Makulusu”
Não há nenhum povo que tenha feito mais sacrifícios para
recuperar a sua soberania e dignidade do que o povo guineense. Não conheço
nenhum povo que tenha abraçado de uma forma tão decidida e espontânea os ideais
de liberdade e independência como o povo guineense. Não consigo imaginar nenhum
povo que esteja hoje tão constrangido na expressão da sua dignidade e com a esperança num futuro melhor tão debilitada como o povo guineense.
A nossa Guiné transformou-se num djongagu com o qual nenhum dos seus filhos parece saber/poder lidar.
Mergulhada numa crise cada dia mais profunda – e sem fim imediato à vista – o país
tem o presente envenenado, o futuro hipotecado e corre um risco sério de ver o
passado contrafeito. De desilusão em desilusão fomos ficando cada dia mais longe
daquilo que foi o sonho de emancipação que tanto marcou e empolgou a minha
geração.
Como foi isso possível? Como é que conseguimos chegar tão
depressa a esse nível de frustração colectiva tão generalizada sem que houvesse
alguém ou algo que nos interpelasse, que sacudisse a nossa “consciência
patriótica”, que nos levasse a erradicar de uma vez por todas esse macbethiano djunda-djunda pelo poder que a todos
tanto empobrece e deprime? Com que magia fomos capazes de transformar, em
menos de uma geração, o nobre espírito da
luta na famigerada política de the
winner takes all?
Será uma mera questão de amontondadi,
como insinuam os revoltados cantores de rap?
Será porque, profundamente compenetrados nas lutas intestinais pelo poder, nos
rendemos à ideologia do tafal-tafal? Ou
será que foi simplesmente porque só um lado de nós cresceu ?
“Das ist zum kotzen”
Quando comecei a aprender a língua alemã, do zero absoluto,
num outono rico de eventos, tinha uma certeza inquestionável: ia dominar aquela
língua. Nem os sons de difícil pronúncia, nem a complexa estrutura gramatical, nem
tão pouco as exageradamente longas palavras, iam impedir isso. De onde vinha
tanta certeza?, pode-se perguntar hoje, mas não naquele tempo. Cinco anos
depois da proclamação da independência, era o tempo em que vencer era a nossa
sina. Era cidadão de uma orgulhosa ‘nação africana forjada na luta’, onde todo
o cidadão voluntariamente se predispunha a dobrar o mundo ao meio, se assim o
Partido ordenasse.
Era a oitava língua que estava aprendendo, quatro das quais
sem nunca ter tido a oportunidade de recorrer a um dicionário, glossário, ou
nada que se lhe parecesse, para descobrir o significado de uma palavra nova. Em
quatro ocasiões anteriores tinha-me desenrascado sempre sozinho. Dei-me conta agora
de que nunca dantes me tinha dado conta desse facto!
O uso da palavra era arte. E como toda a arte, ela tem uma
finalidade: dar expressão aos nossos sentimentos. Visto nessa perspectiva, o
significado de uma palavra desconhecida engendrava sempre uma componente de
subjectivismo. Talvez por isso, o significado (ou significados) não se
perguntava, descobria-se. Perguntar era uma declaração de infertilidade
intelectual a que ninguém se atrevia a expor-se. O sentido da palavra desconhecida
estava assim sempre ao alcance da nossa imaginação.
Foi com esse espírito de liberdade e criatividade no uso das
palavras e expressões que encarei o aprendizado da língua germânica e que me
permitiu mais tarde ‘descobrir’ um significado original de uma expressão que
passou a ter um valor especial para mim: “das ist zum kotzen”.
Quando, depois de uma experiência laboratorial mal sucedida,
ouvi a frase pela primeira vez, algo de extraordinário aconteceu comigo: senti-me
reconfortado. Não sabia o que exactamente significava a expressão, mas tive a
certeza absoluta que reflectia aquilo que ocorrera instantes antes e o
sentimento de fracasso que em mim deixara. Lembro-me perfeitamente de ter
repetido a frase, alto e bom som, bem como do efeito paliativo que isso
causara em mim. Era a magia que vinha da arte de ‘koba mal’ na língua mandinga,
conjugada com a vivacidade da língua balanta.
Mas tarde soube que não era exactamente aquilo que
imaginara, que aquela frase significava somente ‘isto é enjoativo’, mas decidi
ficar com o significado que inventara. Não encontrava em nenhuma das minhas
línguas maternas nada que exprimisse de uma forma tão fiel a sensação de
frustração, de revolta, de falhanço (tudo isso ao mesmo tempo), como esta
pequena frase. Por isso, perante esse permanente flagelo nesta minha Pátria
Amada, stressa-me tanto não ter que, também permanentemente, declarar: Das
ist zum kotzen!
A vitória
dos ideólogos do tafal-tafal
A situação que o país tem vivido tornou-se uma verdadeira
afronta para a quase totalidade dos guineenses, exceptuando, obviamente, os
novos guardiães da tabanca, que da anarquia têm feito o seu principal trunfo
quer para seu enriquecimento ilícito, quer para a promoção da ideologia do tafal-tafal.
O país que nasceu com tudo para se afirmar como uma nação de
“Paz e Progresso” (está registado no Hino Nacional!), transformou-se
paulatinamente num extenso ‘kau di tchur’, onde o povo canta chorando e chora cantando. Quem da minha geração seria
capaz de imaginar que depois da epopeia da libertação do colonialismo e quando
tudo, finalmente, prometia passar a ser pacífico e harmonioso, teríamos que assistir,
pequenos e impotentes, a tamanha catástrofe?
Excedendo as previsões mais ‘reaccionárias’ da época, e
contrariando as aspirações mais elementares a uma vida digna e condigna, o
nosso sol desapareceu cedo demais (1980?) para não mais voltar a arder… E entre intentonas e inventonas aos bocados fomos aprendendo a renunciar aos
ideais. Ou a traí-los.
Perante a miséria generalizada que se instalou – e como
estratégia para se fazer face ao dilema da sobrevivência – tentámos encontrar
refúgio onde nunca nos imaginámos. Talvez por isso, a elite política guineense desenvolveu
novas habilidades e capacidades. Sem pejo nem pudor, assumiu a mendiguice como um desígnio nacional,
perdendo a noção do ridículo e, ainda pior, a consciência de que, ontem como
hoje, “por mais quente que seja a água da
fonte, ela não cozerá o teu arroz”.
Por isso assistimos ao florescer de artefactos que minam os
alicerces da identidade nacional com a maior naturalidade. A fragmentação dos
catalisadores da coesão social não nos aflige, nem tão-pouco nos incomodam os
recorrentes escândalos no sector da justiça ou o iminente colapso do sistema
educativo.
Vergamo-nos. Sem honra nem glória…
Daí que quando os novos guardiães da tabanca surgem nas suas
vestes de aprendiz de feiticeiro, exuberantes e fanfarrões, até fazem encolher
o céu. E a terra, a nossa terra, humilhada e desonrada, manifesta-se ao mundo
em toda a sua imensa pequenez. Das ist (aber wirklich) zum kotzen!
“Some people feel the rain; others just get wet.”
Mas e agora? O que fazer perante tamanho descalabro? Como
(sobre)viver com/a tanto kasabi pessoal
e colectivo sem enlouquecer ou ter que renunciar aos ideais da juventude? É alimentar
a onda ou perseverar na busca dos fragmentos da paixão amputada?
Entre a resignação e o suicídio deve haver certamente uma
alternativa mais compatível com os nossos sonhos, mais consentânea com o nosso
sentido de dignidade.
Resignar-se é trair. É assumir-se como ‘lan di polon na bentu’, uma atitude que não se coaduna com o
estatuto de lambé. Quem um dia teve
o privilégio de sonhar com uma nação a ‘renascer das cinzas para se tornar no
mais belo jardim do mundo’ não tem a opção de trair. Tem é a obrigação de
resgatar a capacidade de sonhar, de fazer ressuscitar a crença na afirmação dos
portadores de esperança, mesmo quando essa crença aparente às vezes situar-se para
além da utopia.
Utopia? Não, é possível fazer o nosso sol arder de novo! Não,
é possível recriar o país com que sonhámos! Não, é possível livrarmo-nos do
ciclo de lebsimenti sem companheiro,
que tem feito com que até politiqueiros falhados de outras paragens ambicionem aqui
dar-nos lições de boa convivência como se bestas fôssemos.
Como? Em nome da Pátria
Amada podemos voltar a ter o professor a estudar mais para "grevar" menos; podemos
levar o juiz a despir as vestes de gigolô e adquirir sentido de justiça; podemos
ambicionar ter uma classe intelectual ciente dos seus compromissos históricos e
não tão prostituída; podemos exigir que aqueles que do alto das suas posses
decidem sobre a política da energia sejam ao menos conhecedores da Lei de Ohm; podemos
até recuperar Karache e fazê-la povoar só pelos ideólogos do tafal-tafal e demais apóstolos da
desgraça.
Em nome da dignidade, devemos, depois de mais de quarenta
anos de pleno exercício do direito à autodeterminação, reclamar maturidade e
deixar de ter imbecis a brincar de governantes; devemos, após vinte anos de
multipartidarismo estéril, exigir que os votos sejam doados com base em
programas de governação assumidos e não na sacrossanta solidariedade étnica.
E assim, quando o servilismo e a vassalagem forem destronados
pela competência e mérito na guerra de acesso a cargos públicos, quando os
novos portadores de esperança se impuserem e virmos erradicada a política de the winner takes all, quando crescermos –
o suficiente e de ambos os lados – e deixarmos de nos matar uns aos outros só porque
não somos capazes de nos entendermos, poderemos, em nome da sagrada esperança, exigir
que, definitivamente, “cantem o mar e a terra que a nossa luta
fecundou”.
Ecoando pelas lalas
de Kubukaré e florestas de Kobiana até se confundir com as quedas de
Kussilintra, é essa canção que redimirá toda a minha geração, libertando-me a
mim desse trauma que suscita a sensação que dá pela expressão ‘das ist zum
kotzen’.
Utopia? Mera utopia? Pouco me importo, pois na íntegra
subscrevo a posição do escritor e matemático Georg Lichtenberg em como "Ich weiß nicht, ob es besser wird, wenn es
anders wird. Aber es muß anders werden, wenn es besser werden
soll"[1].
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