Nós, os imbecis


“As circunstâncias é que dão peso às palavras. Os imbecis não o sabem, falam no mau momento e não chamam a atenção de ninguém. Algumas orelhas distraídas ouvem-nos; ninguém os escuta.”  
Fafali Koudawo
In “O Desaparecido”, 2002  
                                                                                                                                                        
                   


Cumplicidade uma vida inteira
Faz hoje quarenta dias que Koudawo nos deixou. Quarenta dias, mas é como se tivesse sido esta madrugada. Da infância trago a convicção de que é este o prazo para se interiorizar a partida para o além de um parente. A fórmula é aguentar quarenta dias – nem mais, nem menos – e depois carregar no botão Play e tudo retoma o seu curso normal. Sem mágoas, sem ressentimentos, sem remorsos…  Que ilusão!

Um tão longo cortejo fúnebre
Quarenta dias é suposto ser o prazo de validade para todas as sensações e manifestações de kasabi. Findo esse prazo, dita a crença que trago da infância, o corpo e a alma devem readquirir o seu fulgor regular, e a vida, essa deve continuar o seu curso habitual, como se nada acontecesse. Sem oferecer nenhuma poção sedante ou algum feitiço amnéstico, exige-se que esse lapso de tempo – quarenta dias – seja o purgante redentor.  Mas não é, não está a ser… Que pena!
Ignorando as sequelas desse penoso e recorrente exercício de renúncia e as já tão balumadas cicatrizes da traição, pretende-se que seja uma terapia, essa crença. Uma terapia que idolatra a promiscuidade entre a vida e a vida-pós-vida, como se ausente eticamente rimasse com presente. Mais do que nunca, revolta-me hoje essa blasfémia! E na solidão da descrença, abandonado, sinto-me entregue a uma única questão, que me corrói a alma e corrompe a voz: e agora?
Sim, e agora? Agora que o tempo permanece incompreensivelmente parado e tão dolorosa­mente ostenta a nossa pequenez, que a decepção repõe o manto da frustração e inibe a nossa comprovada aptidão de encaixe, que o quotidiano impiedosamente readquire toda a dimensão da incerteza, sinto o botão do Rewind da memória ser reactivado, abusivamente desvendando a insignificância de crenças e convicções inocentemente importadas da infância.
E nesse cortejo de momentos ingloriamente abafados, sem nunca admitir espaço nem tempo para ser entendido, o flagelo se reaviva: Idrissa, Bartolomeu, Zé Henriques, Aguinaldo, Fawundu…

Toda a acção causa uma reacção
Cedo tive que assumir, por conveniência, que “Everything in creation must obey a law.”([i]) Mas, que lei é essa que, contrapondo-se a tudo o que se possa assumir como legítimo, nos obriga a ciclicamente reformatar os ideais? Diz-me tu, Koudawo, que sempre fizeste questão de distinguir entre conhecimento e sabedoria, que lei é essa que pretende tornar-nos tão incompatíveis com os nossos sonhos?
Impelido pela certeza de não ter entendido a mensagem da nossa última conversa, vergo-me perante o encanto da Lei do Eterno Retorno de Nietzsche. Na virgem madrugada que se anuncia, sinto entoar o canto da redenção, a reafirmação da vida como só nós a exigimos e amamos, nós os supostos imbecis. Mas perante os implícitos desafios éticos subjacentes às nossas opções de vida, ser-me-á tolerado ignorar as sakalatices dos novos guardiães da morança? Contentar-me-ei com o silêncio dos vencidos? Continuarei a ignorar que, definitivamente, as circunstâncias é que dão peso às palavras?
Inundado por esse mar de incertezas, que ingloriamente insiste em remover os marcos da dignidade, sinto, distante mas reconfortante, o canto à nossa cumplicidade. Por isso, perante tanta ligeireza da palavra, impõe a decência apostar na massa, para lhes atribuir o peso que convém.
Tímido e prudente como sempre, talvez Idrissa não discorde. Mas, tantos quarenta dias distante da alma – embora se saiba sempre presente nos sonhos – provavelmente questionaria a justeza de um eterno e genuíno recomeço e privilegiaria a Lei da Gravitação de Newton, no interesse de manter os nossos ideais sempre em órbita, para que eterna e mutuamente se atraiam.
Reconciliador e pragmático, Bartolomeu endossaria a Teoria Geral da Relatividade de Einstein, no interesse da preservação do que espiritualmente temos de mais precioso: o peso da nossa crença, a coerência dos nossos actos, a nobreza dos nossos sentimentos, a firmeza das nossas palavras, absolutamente isentas da influência das circunstâncias.
Visionário e inconformista, Zé Henriques apontaria a Lei de Lenz e, perante esta devastadora onda de infortúnio, lembraria que “o sentido da corrente é o oposto da variação do campo magnético que lhe deu origem”.
E assim, sin tadju nin rebés, mas moralmente firmes e motivados, voltamos ao ponto de partida ou, quem sabe, à terceira Lei de Newton, à famigerada Lei da Acção e da Reacção.

A Lei de Bsum
Aguinaldo questionaria certamente as matrizes desse inglório jogo de faz-de-conta, que pretende impor, qual golpe de magia, um impessoal e universal paliativo para estas constantes e dolorosas partidas do destino. Por isso, contrariando a maldição dos deuses da terra, impugnando o veredicto dos novos guardiães da morança, apetece-me mil vezes interrogar: “Que se teria passado se não sucedesse o que sucedeu?”([ii])
Essa interrogação, que tem adquirido um sentido e uma dimensão diferentes à medida que se consolida a insignificância das tais crenças e convicções da infância, tem sido o meu panu di kubri destes últimos tempos, enchendo o meu quotidiano de uma incolor incerteza: será este o verdadeiro sentido da vida?
E o pesadelo, quarenta dias passados, diariamente se repete, se reafirma e se reformata ao ritmo da decepção, pondo em causa a universalidade das leis da natureza. Não sendo apologista de nenhuma Teoria da Conspiração, nem tão-pouco adepto da fatalista Lei de Murphy, questiono todavia a legitimidade da ambição de remover, com um oco djadar de Kandjafra, vivências e conivências registadas na indelével grafia só decifrável por aqueles que não se importam com o peso que as circunstâncias ditadas pela ideologia do tafal-tafal possam atribuir às suas palavras. E depois? E agora?
Sim, e agora?
Quarenta dias se foram, mas a indignação mantém-se. E cresce todos os dias! Tal como a frustração ao cabo de cada tentativa malograda de encontrar paliativo para estas injustas e incompreensíveis partidas do destino.
Talvez Fawundu não esteja de acordo, mas Idrissa estará de certeza. Por isso não te pergunto a ti. Peço-te é que lhes digas que eu, amanhã, vou-me levantar cedo e, para eternizar o peso da nossa cumplicidade, proclamarei a única Lei que importa: “I want to feel what I feel, even if it’s not happiness”([iii]).
                                                                                                               
Bissau, 5 de Março de 2015



[i] Jimmy Cliff, in “The house of exile”

[ii] Carlos Fuentes, in “A Laranjeira”

[iii] Toni Morrison, in “Home”



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