Ode à Independência
Volvidos mais de quarenta anos, e malgrado todas as
contrariedades e os inúmeros dissabores entretanto vividos, a Independência
continua a ser aquilo que sempre foi para mim: um momento supremo de realização
pessoal e colectiva. São poucas as ocasiões comparáveis em toda a minha vida. Raras
vezes tive o privilégio de depositar tamanha certeza na transcendência de um
acontecimento.
|
"Pelos seus frutos os reconhecereis" |
Sonhos e Dependências
Memórias da adolescência há muitas. Geralmente a maioria
delas não sobrevive aos efeitos corrosivos do tempo e dissipa-se com maior ou
menor veleidade, com ou sem vestígios. Despejadas pelo tempo, essas memórias
dão lugar a ideias e imagens, pretensamente mais consentâneas com aquilo que aspiramos
assumir, em cada etapa, como nossa própria imagem. A partir de um determinado momento,
elas sequestram os nossos sonhos, manipulam a nossa consciência e insolentemente
ambicionam dar rumo certo à nossa
vida adulta.
Mas há memórias da adolescência que crescem connosco, que se
fundem e confundem com a nossa própria existência, marcando de forma indelével
os graciosos e os pungentes momentos desta longa e eterna jornada em busca da
utopia. Dotadas de sua própria escala de tempo, essas memórias desfilam sempre
imaculadas, isentas de qualquer tipo de preconceito, imunes a todo o tipo de vaidade
ou remorso.
A Independência do meu país foi uma das melhores coisas que
aconteceram na minha vida. Poucos momentos na minha vida foram tão fascinantes
quanto o foi o advento da Independência. Foi um fascínio brotado da simbiose entre
um fervoroso desejo e uma inabalável fé. Era a fé numa aventura que era suposto
dar uma outra vida à vida depois de passar por metamorfoses que lhe confeririam
um estatuto especial na consciência colectiva. O desejo, esse cresceu com a
violência do quotidiano, moldou-se ao ritmo dos obstáculos a transpor até se
cristalizar num afeiçoado sentimento.
Os dois juntos criaram indefectíveis cumplicidades e conquistaram
o céu e a terra: “Nós vamos construir na
pátria imortal a Paz e o Progresso”[i]. Feito testamento
no nosso Hino Nacional, sem se definir se ambição ou promessa, Independência
ganhou um conteúdo singular, tão atraente quanto caprichoso: Paz e Progresso. Encheu
o nosso orgulho e deu novo sentido à vida. Que mais se podia ambicionar depois
de tantos “séculos de dor e esperança”[ii]?
Assim, visto numa perspectiva comercial, a Independência
surgia como aquela publicidade que diz: “pague
um, leve três”.
Seria interessante averiguar até que ponto essa visão
mercantilista do processo contribuiu a nível individual para o posicionamento
massivo e inequívoco a favor da luta de libertação nacional. Com efeito, se a Independência,
isto é, o fim do retrógrado e violento sistema colonial português, a
oportunidade histórica de reassumir as rédeas do próprio destino e a
possibilidade de ser cidadão de pleno direito, era um atractivo já em si
bastante forte, a perspectiva de a isso se juntar Paz e Progresso era
simplesmente deslumbrante!
Assim, feito o pagamento ao preço de onze longos e violentos
anos de guerra, era legítimo exigir o recebimento do ‘pacote’ completo, onde obviamente estariam incluídos, para além da tão
apetecida Independência, a tal Paz e o Progresso. Por outras palavras, depois
da guerra pela Independência as armas deviam calar-se de vez…
Mas porque as armas continuaram a falar sempre mais alto, a Paz não
se revelou. Na etiqueta onde devia constar algo como harmonia, justiça,
fraternidade ou solidariedade (ou se calhar tudo isso junto, tamanha era a
expectativa), surgiu uma mancha incolor. Gerou-se polémica, descontentamento,
frustração e traição. Muita traição! A corrupção instalou-se majestosamente, o
‘espírito da luta’ faliu e a
esperança foi despejada. A arte de criar dificuldades para vender facilidades
aprimorou-se, tornando-se em requisito mor de todo o candidato a político. Em
menos de uma geração a mendiguice gerou
uma atrofiada e humilhante Mon di Simola,
o tatal-tafal adquiriu o estatuto de
ideologia e tomou conta do quotidiano.
Progresso tinha uma apetência e atracção particulares.
Representava a nossa afirmação como Nação, o acertar de contas com a História
como um Povo. E era tudo tão tangível: alfabetizar, educar, amar, construir,
ambicionar, criar, poder sonhar… Era o momento de solenemente exigir que,
finalmente, “cantem o mar e a terra / a
madrugada e o sol /que a nossa luta fecundou”[iii].
Volvidos mais de quarenta anos, e malgrado todas as
contrariedades e os inúmeros dissabores entretanto vividos, a Independência
continua a ser aquilo que sempre foi para mim: um momento supremo de realização
pessoal e colectiva. São poucas as ocasiões comparáveis em toda a minha vida. Raras
vezes tive o privilégio de depositar tamanha certeza na transcendência de um
acontecimento.
Deve ser certamente por isso que quando as estatísticas anunciam
a humilhante e vergonhosa taxa de analfabetismo, o que me salta à vista é a
beleza da imagem que é ver nas manhãs de sereno, vestidas de batas da mesma cor
e mesmo tecido, todas as crianças a caminho da escola; quando na tabanca, revoltante
e ruidosamente se chora a sorte da mulher que perde a vida na missão de dar um concidadão
à vida, é o inspirador silêncio dos laboratórios de pesquisa que se instaura na
minha mente; quando sinto a ausência da dignidade e a falência da decência nos
actos e discursos daqueles que ainda miseravelmente persistem em falar em meu
nome, é o alegre cantar de tractores em prósperas cooperativas agrícolas que me
enche o ouvido.
Amparado por esta África que se reergue, restauro as
memórias da adolescência e orgulhosamente deixo-as desfilar: imaculadas,
isentas de remorsos e dos fantasmas do passado, imunes a todo o tipo de
espectros do malogro.
E assim, na calada das noites
de insónia na terra adormecida[iv], floresce a reconfortante certeza de
não ter sido burlado por uma publicidade enganosa; as promessas da Independência
se reafirmam, na sua totalidade e integridade, consubstanciadas em algo
memorável, acalentador e efectivamente regenerador: Paz e Progresso.
Na iminência da tão aguardada proclamação de “Ora di kanta tchiga”[v], diariamente
ensaiando o épico compromisso “N na nega
bedju pa kerensa ki n tene na bo, Guiné”[vi], liricamente
desvendando “o alvorecer numa nação que
renasce das cinzas para se tornar no mais belo jardim do mundo”[vii], é o
orgulho de ser co-obreiro da minha Pátria
Amada[viii]
que renasce em mim, trazendo de volta, definitivamente livres do sequestro, os
meus sonhos de adolescência.
[i]
Cf. Hino Nacional da Guiné-Bissau
[ii]
Idem
[iii]
Idem
[iv]
Cf. Povo Adormecido, poema de Tony Tcheka musicado por Zé Manel
[v]
“Chegou a hora de cantar”, música de José Carlos Schwarz; Título de um livro de
Moema P. Augel
[vi]
“Recuso-me a envelhecer, pelo amor que tenho por ti, Guiné”, música de José
Carlos Schwarz
[vii]
Cf. As Orações de Mansata
[viii]
Título do poema de Amílcar Cabral que se tornou Hino Nacional da Guiné-Bissau
Comentários