A outra mistida

  ... mãe, deixa o meu outro eu, aquele que mantive imune, procurar asilo no teu ventre. E se me perdoares, mãe, se me esqueceres, ficarei à espera de mim. E no teu próximo parto, mãe, eu serei eu mesmo.
                                                                                                                                                             
                                                                                                                                                                    
                                                                                                                                        

A cada um a sua inconfessável, inquestionável, inadiável mistida 


?


Eu. Sou eu e não eu ao mesmo tempo. Em cada instante. Sou como a fotografia. Eu e não eu. Uma eternidade feita momento. Um único momento. Finito. Sem intimidade. Sem vizinhança. Sem esperança.

Olho para mim, para a minha sombra, e não me encontro. Falo para mim, para a minha alma, e não me entendo. Procuro à volta, os meus sonhos, amores, paixões, o meu país... Procuro na minha memória delirante os rastos dos meus irmãos, dos meus amigos, dos meus companheiros...  Procuro, procuro... Nada! Só encontro a solidão. Uma misteriosa e vagabunda solidão. Às vezes agressiva, às vezes silenciosa. Mas sempre presente, eternamente cúmplice. Tal como o teu sorriso, que me cativa e me arrasta para longe de mim... E seguindo o eco da tua vaidade reinvento as pegadas do teu amor ambulante. Do meu outro eu surge mais um eu - que desconheço e ignoro - que te quer, que te adora, que te ama! E com a minha solidão cresce a ambição de sentir a tua mão carinhosa passear na minha face, afagando a amargura que assola a minha alma, temperando o fel que corroi o meu coração: acorda, querido. E quando abro os olhos, consciente do perigo que é encarar o teu rosto, desejo a tua rendição: vamos, querido, acorda... Foi só um pesadelo.

E sem ser eu, sou eu. E sou como a fotografia. Eu e não eu. Uma longa caminhada reduzida a um passo. Um único passo. Curto. Sem objectivo. Sem meta. Sem destino.

E sem destino anunciado, oiço passos carregando a esperança, toda a esperança. Passos apressados, fugitivos, longínquos... Rogo pela minha alma e acodem-me vozes ferozes, celestiais, amaldiçoando a minha (in)existência. Apalpo a vida e oiço a noite chegar. Agressiva. Violenta. E no adulterado alvorecer da fraternidade me vejo em mil momentos defraudado, despedaçado, transfigurado... Perdido. Procuro o meu verdadeiro eu e sinto-me distante, flutuando no tempo sem tempo. Interrogo-me, procuro-me, desejo-me... E não me sinto eu. Eu mesmo.

Por isso, confesso: Eu sou como a fotografia. Eu e não eu. Um profundo amor reduzido a um olhar. Um único olhar. Fugaz. Sem cor. Sem brilho. Sem fé.

E sem fé nem fuzil sinto com a derrocada da esperança botas do antigamente sufocando a minha voz, pesadas botas demolindo ideais, velhas e sujas botas destutelando a minha memória. E quando me procuro, no escuro da pátria sem futuro, só vejo o striptease dos Altos Dignitários, hipócrita e pagãmente profanando a minha/nossa africanidade. Sem direito à palavra, resgato a minha voz ferida e busco refúgio longe de mim.

Por isso, torno a confessar: sou e não sou eu. Sou como a fotografia de mim mesmo sem mim. Sem o meu passado, sem os meus sonhos, sem orgulho…

Quero gritar por ti, mas a dor não me deixa, mãe. Mãe, tenho um punhal de dois gumes espetado no peito, que me impede abraçar-te. Por isso, mãe, deixa o meu outro eu, aquele que mantive imune, procurar asilo no teu ventre. E se me perdoares, mãe, se me esqueceres, ficarei à espera de mim. E no teu próximo parto, mãe, eu serei eu mesmo. Para que esse amor que tenho, essa profunda paixão pela vida, não fique reduzida a uma mera e fútil recordação.

Eu ser eu mesmo. Reconciliado comigo e com a minha Pátria Amada. Eu voltar a ser eu. Sempre eu. Mãe: que mistida! 

Comentários

Rubilson Delcano disse…
Fiquei arrepiado depois de terminar a leitura desse, que é com certeza, o maior texto literário que já li durante toda minha vida. Digo maior, porque é.Nenhum outro já mais carregou um sentimento tão profundo como esse.
Parabéns, meu eterno escritor!!!
São pessoas como você que me dão sempre a motivação e coragem de acreditar que ainda é possível sonhar... quando parece que tenho medo de dormir.

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