Entre aspas

Este artigo foi publicado no semanário "Banobero" em Agosto de 1999,
altura em que se discutia no Parlamento a nova lei da cidadania. 
                                                                                                                          
                                     

Entre Aspas

 Os debates que tiveram lugar nos últimos tempos no Parlamento sobre a Lei da Cidadania fizeram-me lembrar uma confissão de um amigo e colega de infância aquando da minha última visita à minha tabanca natal: “a língua portuguesa é muito complicada, não dá para escrever”. E tudo por causa de uma situação que não conseguia exprimir convenientemente devido, aparentemente, à confusão que lhe causava um único e simples acento. Uma situação que no fim da nossa conversa acabou em constatação, antes de ter sido preocupação e depois de passar por interrogação: “Afinal, nestas coisas de desenvolvimento  somos cágados ou estamos cagados? Quer dizer, cagados, entre aspas”...

Que me desculpem as senhoras leitoras deste jornal se acharem que estou a empregar termos escatológicos mas, como deverão constatar as mais atentas, não fiz senão citar, tal e qual, uma frase que me foi dita por alguém que conheço muito bem e cujo nome, se necessário for, posso revelar sem problemas nenhuns. Mas que fique desde já claro que não é que queira fugir à responsabilidade, transferindo as eventuais represálias a outrém, nada disso. A verdade é que esse meu colega não é como os nossos digníssimos deputados da nação, primeiro, e, segundo, à tabanca onde ele ainda vive e de onde eu venho, não chega nenhum jornal e ele, porque o conheço bem, sei que está-se nas tintas para o que se diz em Bissau. Bem, está-se nas tintas entre aspas.

Mas mesmo que não tivesse a oportunidade de passar a batata quente a alguém (neste caso concreto ao meu amigo de infância), na verdade sempre podia arranjar outras desculpas para me proteger dos inevitáveis bocasinhos de alguns pseudo-intelectuais e outros pretensos puritanos da nossa praça. E acredite-se que posso desenrascar as que forem necessárias. Tudo isso, e aí é que está o problema que não estamos com ele, sem fazer recurso aos direitos constitucionais – nomeadamente o direito à “liberdade de expressão” – que imagino ainda possuir depois das alterações à Constituição da República que os nossos digníssimos e respeitados deputados da nação, numa decisão patriótica difícil de igualar, entenderam por bem aprovar para salvaguardar os superiores interesses da nação guineense e proteger a soberania do nosso querido país (sic).

Repare-se que, em condições normais, teria que libertar a liberdade de expressão das aspas, oferecendo-as à citação feita dos nossos digníssimos deputados da nação, aliviando esta última do fardo do sublinhado. Mas como nessas coisas de escrita também não sei onde nem como é que estamos (ainda não tive o privilégio de aceder ao Acordo Ortográfico, nem quero plagiar o dito do meu colega de infância) prefiro antes deixar as coisas como estão, não venha agora a ser acusado de coisas que não gosto de ser. Mas também como não me importo... Bem, não me importo é maneira de dizer, quer dizer, devia dizer entre aspas, não é?

 Cidadania da Demagogia vs Demagogia da Cidadania

Seja como for, o que importa neste momento é que, quer este artigo venha a ser publicado ou censurado, estou livre da ameaça de ter “a boca rasgada até às orelhas”, o que é, em si, já um grande progresso. Aliás, convenhamos que como nós só escrevemos (não falamos absolutamente nada), não seria nem de justiça nem democrático admitir qualquer acto punitivo. E acto punitivo como quem diz, isto é, entre aspas, porque, segundo se diz por aí (e espero que não seja só maneira de dizer) o jota garandi chegou para ficar...

      Convém realçar que a referência feita logo no início deste artigo aos ricos debates dos nossos digníssimos parlamentares não é gratuita. É que, de facto, a minha próxima ida à minha tabanca natal não será como as anteriores. Quer dizer, não a ida propriamente dita, porque nesse aspecto certamente nada vai mudar, a estrada lamacenta continua a ser a mesma, talvez com mais buracos, certo, mais não é isso que está em causa. O que vai mudar é o tema das conversas que costumo ter com o meu amigo e colega de infância. Sem dúvida, vamos ter que trocar de papel desta vez. Desta vez não, da próxima vez. Quero dizer que ele vai ter que me escutar. É que normalmente é só ele que fala porque, di-lo frequentemente e com orgulho bem ostentado, está se marimbando no que acontece em Bissau. Só um pequeno parêntesis a esse respeito: eu assumo o marimbando dele sempre entre aspas, porque sei do que é realmente capaz...

Bem, quando eu for da próxima vez à minha tabanca natal, tenho um tema no qual, sem dúvida nenhuma, ele não vai poder se marimbar: a lei da cidadania. Sim, isso mesmo, a recentemente aprovada, muito patriótica, a bendita lei da cidadania. Já estou a imaginar o rosto dele quando lhe comunicar que foi promovido, de um dia para outro, sem mais nem menos, a cidadão de primeira e eu de terceira. Terceira entre aspas, porque, bem vistas as coisas, perante esta nova lei devo ser menos guineense que os célebres mafiosos que compram os passaportes da Guiné-Bissau nos nossos Consulados ou os cadastrados “Hommes d’Affaires” que os adquirem no Ministério dos Negócios Estrangeiros em Bissau por via de negociatas tão obscuras quanto vergonhosas.

Cidadania Vitalícia vs Deputados Vitalícios

Mas voltando ao meu colega e amigo de infância, dir-lhe-ei da sua promoção sem ser entre aspas (ou será antes estar entre aspas? – vê-se logo a justeza da opinião do meu amigo acerca das dificuldades que nos cria a língua de Camões). E antes que possa compreender a que me refiro, vou-lhe wagar logo a grande nova: o Estado está a autoextinguir-se em Bissau graças ao patriotismo dos nossos meritíssimos deputados da nação!

No entanto, como sei que o meu amigo possui um elevado sentido de humor – e isso sem falar da sua eloquência ímpar – terei que me antecipar na conversa, não lhe dar nenhum direito à palavra. Quer dizer, antes que ele tome conta da situação e comece a dissertar sobre o comunismo científico e a teoria marxista-leninista da extinção do Estado – domínios em que ele é particularmente versado e deve certamente ter feito inveja a muitos ex-dirigentes da JAAC – vou ter que me pôr a sério, mas mesmo muito a sério, e comunicar que a nova lei de elegibilidade para o exercício de cargos públicos, que veio a ornamentar a já em si maravilhosa lei de cidadania, obriga a que o Presidente Supremo, o Presidente Interino, o Presidente da ANP, o Presidente do Supremo Tribunal, o Primeiro Ministro, o Procurador Geral da República, o Chefe de Estado Maior das Forças Armadas, enfim, todos os titulares dos órgãos de soberania tenham que devolver imediatamente os seus couros para salva­guardar os interesses superiores da nação guineense e proteger a soberania do nosso querido país.

E se o meu querido amigo e colega de infância caísse na tentação de argumentar que os Presidentes Interino e da ANP eram guineenses de primeira categoria como ele, já tenho o golpe seguinte pronto e ensaiado: terão que provar, com documentos originais, escrito preto no branco, que os pais e os avós deles nasceram nos anos e nas tabancas em que pretensamente nasceram, com uma nacionalidade que não seja aquela que alguns dos nossos honrados deputados clandestinamente ainda conservam ou reivindicam, num país que não esteja entre aspas nem seja mera província de um outro; que os ditos pais e avós foram alguma vez registados nalguma Delegacia de Registo desse suposto país por algum oficial de registo civil que fosse da mesma nacionalidade... E se notasse alguma tentativa de prolongar a contenda (contenda entre aspas, claro) daria então o golpe de misericórdia, fazendo recurso à palavra de ordem actualmente em voga, ou seja: lei é lei e ninguém está acima da lei. Logo, se a lei diz há que apresentar provas documentais não vamos aceitar testemunhas verbais nem oculares, nem vivas nem mortas, como foi da outra vez em que um certo fulano preparou uma “koba di djanfa” onde nem ele próprio cabia.

Depois desse tratamento de choque que iria aplicar sem dó nem compaixão ao meu amigo e colega de infância – e após o qual espero que deixe finalmente de se marimbar nas coisas que acontecem em Bissau – conto apresentar-lhe uma proposta absolutamente irrecusável: como pelos vistos (aliás, pelos vistos, não, pela lei) não vai haver nenhum candidato ao exercício de cargos públicos entre os politiqueiros de Bissau, que venha ocupar uma das vagas que vão estar disponíveis nos diferentes órgãos de soberania! E se me perguntar por que não tu?, também já tenho resposta pronta: simplesmente porque o meu pai nasceu do outro lado da fronteira – dessa virtual, fictícia, maldita fronteira que os europeus inventaram justamente para nos manter nesse thumul-tchamal em que nos encontramos – os nossos digníssimos e respeitados deputados da nação descobriram que já não sou aquilo que sempre fui e sempre me senti: um cidadão de pleno direito!

E se isso não bastasse para convencê-lo, teria que lembrar ao meu interlocutor um facto que ele não poderá contestar: que o meu nome nunca saiu em nenhum Boletim Oficial, isto é, nunca tive um couro do Estado, e que, consequentemente, não estou “so wie so” habilitado a exercer um cargo público.

Interesses da Nação vs Interesses de Clã

 Altura de fazer uma confissão às senhoras leitoras deste jornal, mas que, por favor, não deixem  chegar aos ouvidos dos nossos meritíssimos e muito patrióticos deputados da nação: a única tarefa que terei que resolver na minha próxima deslocação à minha tabanca será convencer o meu amigo a prometer vir à capital. Prometer, e basta! Sabem porquê? É muito simples: ele não é um camaleão, como alguns dos nossos digníssimos deputados e politiqueiros, que se movimentam na arena política “suma lan di polon de Brá na bentu”. O meu amigo e colega de infância é um fulano sério – mas sério sem aspas nenhumas – quer dizer, quando promete, cumpre! E isto não é propaganda política a favor dele, nem contra os nossos digníssimos deputados, longe disso. Na realidade, se tivesse que caracterizar em três palavras toda a existência do meu amigo e colega de infância, essas palavras não poderiam ser outras senão estas: vive cumprindo promessas! Provas disso? Não me faltam. E não sou o único que as pode apresentar, toda a gente em Catió sabe. Toda a gente entre aspas, naturalmente. Porque os que não estiverem entre essas aspas devem lembrar-se da passada que foi o marco máximo de matchundadi naquelas terras, mas que, por inconveniência e fraqueza das circunstâncias, não vou poder relatar.

No entanto,  para os mais cépticos julgo conveniente lembrar como ele, o meu amigo e colega de infância, foi banido da escola no início dos anos setenta, quando alguns dos nossos actuais e ilustres deputados se esforçavam e se orgulhavam de ser cidadãos da multirracial e multicontinental pátria portuguesa. Imagine a leitora o que é naquela altura, em plena guerra, um rapazinho preto nok de cerca de dez anos, filho de lavrador coitado, que ia à escola sempre descalço e de calções cheios de rombos, nunca escovara os dentes com colgate, a ousar dar um beijo na boca da filha mais velha do Administrador!  Imaginem a loucura que não é tocar com a sua boca – a tal que nunca tinha travado conhe­ci­mento com a pasta dentífrica – a boca de uma menina branca, que nem sequer era uma branca qualquer – filha de comerciante ou capataz de obras – mas sim do próprio Administrador do Concelho, o branco mais grande que havia em todo o sul do país! País entre aspas, logicamente, não venham os nossos digníssimos deputados exigir represálias e/ou reivindicar compensações por uso inadequado de conceitos. Veja-se pois do que é capaz o meu amigo e colega de infância para cumprir a palavra dada...
Portanto, se conseguir levar o meu amigo e colega de infância a prometer vir para a capital para ocupar uma das vagas que brevemente vão estar disponíveis no aparelho do Estado, posso garantir que, pela primeira vez, vou ter um próximo com um couro digno do nome.

Talvez então a gente possa discutir a sério, durante as inúmeras viagens que juntos faremos ao longo dos seus mandatos (que sejam vários!) à nossa querida tabanca natal, no sagrado conforto dos Pajeros e Patrols que ele terá à disposição, sobre a nossa marcha em direcção ao progresso e, definitivamente, concluir se nessas coisas de desenvolvimento e de legislação somos de facto cágados ou então estamos irremedia­velmente cagados.

 Sem ser nem estar entre aspas.

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