O país do "Mo ala lobhata"

Ou a virtuosidade de uma Pátria Amada onde se chora cantando e se canta chorando

Otcha n tchiga Guiné, nha mamé odjan
Nha mamé pega tchora. Kil kusa den dimás
Iva & Itchy
In “Baba”

Há pouco mais de um quarto de século atrás perguntou-me um colega africano, num país não africano e no meio de uma conversa animada em torno da história recente desta nossa África, de que país eu era. E talvez para que não houvesse dúvida em relação ao tipo de informação que ele pretendia obter de mim, esclareceu: eu sou do país onde o Idi Amin Dada foi Presidente da República… Eu falei-lhe com orgulho de uma “nação africana forjada na luta”* , marcada não por um Homem, mas por um exército de jovens, oriundos de todos os cantos do país e de todas as camadas sociais, que ousaram sonhar com e se batiam por uma Pátria Amada** - de liberdade, harmonia e dignidade. No fim, confessei que era de um país onde a filosofia de vida se baseia no princípio segundo o qual “mo ala lobhata!”***

Quis o destino que eu e esse meu amigo (já deixara de ser um mero colega), dessa vez num país africano, nos reencontrássemos recentemente, volvidos cerca de 25 anos. Durante esse tempo, o Uganda conseguira, com mérito próprio e a custo de muito sacrifício, lavar as manchas deixadas por Idi Amin, sarara as crónicas feridas causadas - no chão e na memória - pela tirania e desgovernação e, definitivamente, os seus cidadãos tinham conseguido a nobre proeza de resgatar a dignidade.

Durante esse período – e contrariando as previsões mais pessimistas que alguém jamais ousaria fazer - na minha Pátria Amada trilhou-se pela via do tchumul-tchamal, sufocando o sagrado espírito da luta, asfixiando os extasiantes sonhos de uma existência em paz, harmonia, solidariedade e plena dignidade.

Em menos de uma geração, conseguira-se a inigualável façanha de inundar de choro as nossas ubíquas canções: choro embaraçosamente ritmado da mãe que não aceita a fatalidade da sorte do filho; choro vibrantemente cantado do filho que, revoltando-se contra o despudorado striptease dos pretensos altos dignitários da nação, impugna as humilhantes lágrimas da mãe; choro no comovente silêncio dos velhos, feridos na alma com a política de ‘mon di simola’; choro nas agressivas canções rap dos jovens que se insurgem contra a desgovernação e a crónica incapacidade de se manter acesa a chama da esperança; choro até nas canções de embalar … Confessei ao meu amigo que agora todo “o meu povo canta no choro, chora no canto e fala na garganta do bombolon”****

Sabendo-o um apaixonado pelos ritmos que marcam esta parte de África, presenteei o meu amigo do outro extremo da África com uma colectânea de canções de vários djidius, todas com um denominador comum: chorando a desgraça colectiva, canta-se um novo e colorido alvorecer, de inabaláveis certezas repleto; canções como a do ilustre Bidinte, o qual, ultrapassada a expectativa média de vida, se manifesta todavia profundamente convicto de que ainda há-de ver o dia em que o seu país se reencontrará:

La na nha tera mininus ku pe na tchon
La na nha tera bulanhas tudu minadu
Barkafon di vida 45 tchuba
Ma n sibi son kuma un dia nha tera na sabi!

E é justamente essa certeza num futuro cheio de esperança, malgrado o momento histórico particularmente difícil em que as oficinas do projecto Olhares Cruzados tiveram lugar, que as crianças de toda a nossa Pátria Amada, mesmo aquelas que vivem nas mais que isoladas tabancas da ilha de Canhabaque ou dos carenciados bairros periféricos de Klelé e Plubá, anunciam em todos os seus olhares, canções, gestos e desenhos. Em todos, mesmo naqueles que à primeira vista patenteiem mais desleixo, descalabro ou diskarna.

Das longínquas tabancas do arquipélago dos Bijagós e das imensas lalas de Cubucaré, na calada da madrugada ou no frenesim do mercado de Bandim, soam novas canções que Aliu Bari, Atchutchi, Nsimba e seus pares terão que transformar numa ode à guinendade e dar uma nova cadência para que, com as crianças, os adultos aprendam os rituais da dança do resgate da dignidade e da auto-estima e depois, todos juntos, crianças e adultos, alteremos a forma como nos vemos e como queremos ser vistos por esse mundo fora.

Para que não mais se ‘fale calado, nem se cante magoado’. Para que este belo pedaço de África volte a ser, para sempre, o país onde “mo ala lobhata”. Pela positiva…

 


* - Título de um livro de Amílcar Cabral

 ** - Título do poema de Amílcar Cabral que se tornou Hino nacional guineense e igualmente nome do Ballet Nacional da Guiné-Bissau

 *** - Expressão oriunda da língua fula (ou pular) que pode ter múltiplas interpretações conforme o contexto em que é usada, e se na afirmativa ou interrogativa. Traduzida à letra significa ‘quem não tem não se preocupa’. Na afirmativa, pode ser interpretada como uma manifestação de solidariedade activa, convivialidade, entreajuda. É que quando não se tem algo pode-se sempre contar com a tradicional solidariedade africana. Pode também ser uma negação do egoísmo e a assunção de uma atitude socializante, em que o colectivo conta mais que o individual. Como interrogação, o sentido passa a ser uma acusação de falta de ambição, de preguiça ou até de irresponsabilidade: ‘não tens e não te preocupas?’

 **** - Cf. “Povo adormecido”, poema de Tony Tcheka, musicado por Zé Manel


Comentários

ASP disse…
Um dia nô terra na sábi.
nandi disse…
guiné i terra ku na sabi dia ki sabintidu. dia ku djinti pára panti caleron pa tchupti mafé, é pera bianda kussidu, mininus sirbidu, pa kunsa distindi stera pa iangassa cabass.

Mensagens populares deste blogue

O povo por testemunha

O meu 25 de Abril

Estudar e divulgar a obra de A.Cabral: uma missão actual