A Síndrome do Afeteré

Destruição e 'desvios de procedimentos': sintomas visíveis da síndrome



A síndrome do afeteré
(Artigo publicado no Semanário Kansaré nr.158, Dezembro 2008) 


Há quem acredite que existem raças superiores, civilizadas, e raças inferio­res, bárbaras, e que seja este fenómeno o motivo por que há sociedades capazes de viver em paz e harmonia e outras que só encontram o sentido da existência no tafal-tafal.
Há quem acredite que cada país tem o governo que merece e encontre nessa crença a explicação para o facto de haver sociedades que conseguem evoluir enquanto outras parecem eternamente vítimas da síndrome do afeteré.
Há quem acredite que cada cidadão deve ser capaz de andar com os próprios pés e encontre nessa convicção a motivação para trilhar pela via da dignidade, consciente e orgulhosamente rejeitando a filosofia e a prática de “mon di simola”.
Mas há sobretudo quem acredite no fatalismo do destino e quem acorde todos os dias seguro do “perpétuo início de histórias perpetuamente inacabadas”…

Vendedores de Passados vs. Vendedores de Futuros
Há dias tive em mãos um romance do escritor angolano José Eduardo Agualusa, intitu­lado “O Vendedor de Passados”[1]. O livro é apresentado como sendo uma “sátira feroz, mas divertida e bem humorada, à actual sociedade angolana…”
Não gostei dessa caracterização, mas adorei o título. É que vender passados, mas sobre­tudo passados falsos – como é dito ser a profissão da personagem principal – não deve ser nada fácil. E para fazer dessa actividade invulgar uma verdadeira profissão, ou seja uma ocupação que renda o suficiente para ganhar o sustento, só pode ser se a arte for desem­pe­nhada com muita sapiência e genica. E acrescentaria também coragem, sobretudo se se tiver em consideração que os principais clientes de Félix Ventura (é esse o nome por que responde a personagem em questão) são “prósperos empresários, políticos, generais…a emergente burguesia angolana”.
Depois de ter lido alguns capítulos do romance, vi-me um dia surpreendido com a questão “e se esse vendedor de passados seguisse a tendência actual de internaciona­lização dos negócios e abrisse um dia uma agência, representação, sucursal ou lá o que for, na Guiné?” Teria ou não teria sucesso? Qual seria o perfil do seu cliente-tipo? A mesma “emergente burguesia”? Os politiqueiros? Ou antes os generais? Ou os “prósperos empresários”?
Não sei como seria, mas com a imaginação que se lhe reconhece, o fulano era bem capaz de ter sucesso, sobretudo nestes tempos em que tanto se fala de uma outra “emergente classe”, que não olha a meios para atingir os fins…

Amnésia colectiva e assumida
Enquanto estive a imaginar o que seria de um Félix Ventura neste país, as oportuni­dades de negócio, a clientela, o volume de facturação, os lucros que faria, etc., dei-me conta de um pormenor fatal: o guineense versão contemporânea está-se nas tintas com o passado! Ou como cantam os djidius modernos e nos lembram alguns camaradas com insistência: o guineense tem memória curta, a capacidade de armazenamento dos factos – sejam eles positivos ou negativos, lições ou erros – do passado é deveras minúscula.
Para fazer uma analogia com o que acontece no mundo dos computa­dores, dir-se-ia que o guineense versão contemporânea só tem um tipo de memória, a RAM: cada vez que consegue encher a barriga, o processo metabólico subjacente encarrega-se de remeter tudo o que tenha sido armazenado ou retido na memória para a estaca zero. E é certamente devido a esse fenómeno RAMoniano, a essa profunda aversão a tudo o que tem a ver com o passado, que o guineense versão contemporânea consegue a proeza de esquecer de que se esqueceu de factos e feitos que não convém esquecer.
Esqueceu-se, por exemplo, que a estátua de Amílcar Cabral, generosamente oferecida por um povo amigo há quase duas décadas, continua abandonada, vergonhosamente abandonada ao relento, escandalosamente exposta ao adultério e ao abastardamento, sem que ninguém se lembre ao menos de devolvê-la à procedência ou então transladá-la para um outro país, onde as pessoas procuram não se esquecer de nada do seu passado que revele a honra e a dignidade indispensáveis ao processo de consolidação do sentimento de unidade e identidade nacionais.
Esqueceu-se, por exemplo, das exuberantes palavras de ordem e de toda a verborreia que se seguiu ao golpe de estado de 1980, que fez com que patrioticamente se cavasse toda a Praça Che Guevara, procurando nas profundezas da terra aquilo que facilmente podia ser encontrado na cabeça de cada um: os verdadeiros, autênticos, genuínos motivos que estão por detrás do crónico e revoltante estado de pauperismo desta terra e da sua gente.
Mas esqueceu-se, sobretudo e fundamentalmente, do famoso espírito da luta, do sentimen­to de dignidade, e até da noção do ridículo, transformando o país e a sua gente numa espécie de mendigo malandro e ingrato, incapaz de arcar com as suas mais elementares responsabili­dades, aproveitando a menor oportunidade que se lhe oferece para esticar a sua entretanto célebre “mon di simola”. Essa mão longa e permanentemente estendida que, sem pudor nem remorsos, é usada para extorquir “ajuda”, às vezes até de quem não tem para dar. Essa atitude ignóbil, que alguém sarcasticamente apelidou de ‘mendiguice’, que esteve bem patente na recente cimeira da CPLP realizada em Bissau, em que para se receber seis hóspedes por vinte e quatro horas, - aliás só quatro, porquanto um deles veio com “armas e bagagens” e o outro limitou-se a assinar o “livro de ponto” e a baldar-se logo a seguir – o governo não deixou de aproveitar para organizar e pôr em marcha o maior peditório que jamais se viu! Até parece que constitui agora um desígnio nacional provar a todo o momento e a todo o mundo quão miseráveis somos. Esqueceu-se que a uma nação que se preze não deve faltar um mínimo de dignidade?

Félix Ventura em Angola: Feliz Aventura na Guiné?
Não, não creio que nestas condições de amnésia, voluntária e patrioticamente assumida, Félix Ventura tenha um bom desempenho na nossa Guiné. A ter que internacionalizar o seu negócio e ser competitivo por estas bandas, ele teria que, necessariamente, rever total­mente o seu plano de negócios, malgrado o enorme sucesso que está tendo em Angola.
Mas que teria ele feito para fazer jus à sua fama de empresário inovador e criativo? Os menos incautos dirão prontamente que ele teria que começar por elaborar um novo e muito bem apetrechado diagrama SWOT. E se o fizer como mandam as normas básicas do ofício, chegará certamente à mesma conclusão a que as novas e bem sucedidas classes empresariais – a proveniente do outro lado do Atlântico e a sua congénere local – chegaram há já algum tempo: este é o país ideal para transacções de ‘terceiro grau’.
Por conseguinte, podemos facilmente admitir que Félix Ventura não será vendedor de nada que seja memoriável, nada que possa ser associável a orgulho, nada que tenha vínculo com identidade – pessoal ou colectiva. Em suma, e porque as leis do mercado ditam que a oferta tenha que se adaptar à procura, ele porá à disposição do guineense versão contemporânea o que este nos últimos tempos mais aprecia: o contra-senso, a fantasia, a magia de imaginar um futuro posto no presente e sem passado.
Aos seus fregueses venderia visões de um futuro radiante, alucinantes sentimentos de pertença a uma sociedade em que o exercício do poder político rima com decência, imagens de obras gigantescas como as pontes de Bolola e de Bolama, sensações fascinantes como ser-se funcionário público e receber um salário no final de cada mês, delícias deslumbrantes como as de acordar de manhã e poder lavar a cara com água da torneira, prazeres exorbitantes como a de internar-se num hospital com uma doença e não sair com duas…

Na Guiné tudo é possível
Se decidir vender futuros e mesmo sem se saber o que o nosso amigo angolano Félix Ventura tenha feito constar como Fraqueza e Ameaça no seu diagrama SWOT, há uma coisa que pode ser assumida como dado adquirido logo à partida: vai ter sucesso. Um enorme sucesso até. Porquê? Existem vários motivos, alguns tão evidentes que nem vale a pena mencioná-los. Mas tomemos o mais simples: na Guiné tudo é possível!
E tanto assim é que não é de se excluir que ele possa também, por via da dinâmica e rumo que vier a atribuir ao negócio, estar na contingência de rapidamente ser vítima de uma ‘inventona’ e ser acusado de crimes graves, incluindo o de concorrên­cia desleal face a outros, autóctones, vendedores de futuros. É que sendo tudo possível, nada é impossível.
Imagine-se, por exemplo, que em vez de restringir as suas vendas a um determinado seg­mento do mercado, a grosso, opte também pela venda a retalho. Aí pode ter proble­mas sérios, que podem até levar à etnização do seu negócio. Como? Porquê? Muito simples: tal como o comprador de passados, o comprador de futuros não é um Zé Ninguém, antes pelo contrário. E tal como em Angola, os seus potenciais clientes são, como já foi aqui referido, “prósperos empresários, políticos, generais…”. A única e fundamental diferença entre os dois fregueses tem a ver com um facto que qualquer mercantilista que se preze é capaz de detectar logo à partida: o egocentrismo. Sim, isso mesmo. Nada mais!
Na verdade, enquanto o comprador de passados procura algo exclusivamente seu, que tenha a ver com as suas próprias raízes, com o seu peculiar ADN, o outro não, esse busca sobretudo algo comum, público, ao alcance e na mira de todos. Por outras palavras, todo o poten­cial comprador de futuros, não sendo um filantropo, é um virtual revendedor de futuros. E desses a gente tem em quantidade na Guiné, sendo que todos são vendedores a retalho, registando-se a sua época alta durante as campanhas eleitorais.
E quando há campanha eleitoral não há vendedor de sonhos, aliás de futuros, que se compare com o guineense. Desde o mais insignificante politiqueiro até ao mais grande kakuba, quando tem tempo de antena, em tempo de campanha ou fora dela, é capaz de vender o futuro da Guiné como nenhum outro no mundo. E o mais impressionante é que os fregueses adoram, o povo aplaude e jubila e clama cada vez que lhe é pintado um futuro pela frente, qualquer que seja o seu formato ou dimensão.
Por isso é que é por demais presumível que se Félix Ventura quiser ter sucesso na Guiné terá que limitar-se à venda a grosso: ele vende os futuros aos “prósperos empresários, políticos, generais…”, ou seja aos politiqueiros, e estes revendem o produto, re-etiquetado ou não, mas sempre a retalho, ao consumidor final. Antes ou durante qualquer campanha eleitoral.

Um perpétuo reinício
Mas… e se Félix Ventura desembarcasse em Bissalanca e, em vez de vender futuros – produto que, como já ficou cabalmente demonstrado, tem um mercado florescente à espera – decidisse teimosamente vender passados como tem feito com sucesso em Angola? Seria isso racional? Teria alguma viabilidade económico-financeira? Teria mercado?
Mas… e se Félix Ventura desembarcasse em Bissalanca decidido a vender passados a uma clientela especial, não aos “prósperos empresários, políticos, generais…”, mas a essa malta jovem, descrente e desorientada, para quem o futuro, de tão incógnito, não pode ser conce­­bido sem o espesso manto de frustração e malogro? Sem futuro previsível, mas imunes ao vírus da síndrome do afeteré, seriam eles capazes de reinventar o passado da nação adiada para enfrentar o presente? Munidos da riqueza das avulsas e fragmentadas façanhas do passado recente, seria a juventude guineense capaz de dobrar essa omnipre­sente e vergonhosa “mon di simola”, mandá-la para além da História, de onde nem Félix Ventura, nem nenhum outro mercantilista a possa jamais resgatar?
Mas… e se Félix Ventura jamais desembarcasse em Bissalanca? E se jamais houvesse nem vendedor de passados, nem tão-pouco vendedor de futuros na Guiné? Seria isso política e economicamente admissível? Depois de saber quão promissor é o mercado e tão lucrativo o negócio, seria uma tal decisão possível? Lembrem-se: quando o cenário é a Guiné, tudo é possível!
Pois é, se este último cenário se verificasse, quer dizer, se este relato sobre as virtudes e potencialidades de um negócio tão fascinante quanto lucrativo tivesse mesmo que ter esse desfecho, inacabado, por que carga de água, foi então feito? Por lebsimenti? Diskarna? Falta de imaginação?
Mas… e se tudo isso tivesse sido feito de propósito? Sim, bem de propósito, pode imaginar? Mas então para quê? Porquê? Muito simples: porque acredito na ideia de circularidade, creio numa nova renascença… e também porque, tal como sugere um célebre escritor mexicano[2] “…a forma deste relato, uma montagem invertida, se identificou demasiadas vezes com explosões mortais, vitória de um dos contendores ou aconteci­mentos apocalípticos. Agrada-me usá-la hoje, partindo de dez para chegar a zero, a fim de indicar, definitivamente, um perpétuo início de histórias perpetuamente inacabadas, mas apenas na condição de serem presididas pela palavra, como na história maia dos Deuses dos Céus e da Terra”.





[1] “O vendedor de passados”, José Eduardo Agualusa, Publicações D. Quixote, Lisboa, 2004
[2] Carlos Fuentes, in “A laranjeira”, Publicações D. Quixote, Lisboa, 1995

Comentários

Érica disse…
Que tal reativar este blog?
Abdulai Sila disse…
Boa ideia! Vou ver se invento tempo para isso, até porque tenho tanta coisa para partilhar.
Obrigado pela sugestao!
Helena disse…
Ahahahah o Felix Ventura sairia daqui venderia passado, presente e futuro. Afinal isto aqui e mero surrealismo meu caro amigo Adulai.
cristal disse…
Já estava com saudades de ler esta escrita lúcida e transparente.

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